A teoria conspiratória QAnon está expandindo suas fronteiras para além dos Estados Unidos — e a invasão da Ucrânia pela Rússia está contribuindo para que a China seja vista como aliada por seguidores do grupo.

É o que constatou um novo estudo do Institute for Strategic Dialogue (ISD), demonstrando como mentiras divulgadas pela propaganda estatal russa podem estar reformulando a imagem de Xi Jinping de vilão para herói. 

“Agora, adeptos da conspiração nos EUA descrevem o presidente chinês como um inimigo do Partido Comunista do país, trabalhando juntamente com Donald Trump e Vladimir Putin contra a “cabala global” — a suposta elite de pedófilos adoradores de Satanás que comanda o mundo”, alerta a pesquisadora Elise Thomas, do ISD. 

QAnon abraçou teoria de conspiração russa contra os EUA

A invasão russa à Ucrânia difundiu a propaganda estatal do país para o Ocidente em larga escala, aponta a análise publicada pelo ISD.

Mas, além das informações manipuladas pelo Kremlin, a Rússia conseguiu exportar também uma antiga teoria de conspiração divulgada no país: a de que os EUA têm “armas biológicas” secretas. Essa tese infundada chegou ao QAnon e foi amplificada por jornalistas da Fox News, como o apresentador Tucker Carlson.

Para a autora do estudo, a aceitação da fake news por seguidores da conspiração de extrema-direita nos EUA revela como a comunidade do QAnon serviu como um canal eficaz entre a propaganda estatal da Rússia e a mídia ocidental.

Até agora, a hostilidade dos grupos ligados ao QAnon e adjacentes (aqueles que absorveram não todas, mas pelo menos algumas das principais narrativas do QAnon) em relação à China impediu a mídia estatal chinesa de desenvolver um domínio sobre eles da mesma forma que a propaganda da Rússia.

Mas a autora alerta:

“Se Xi Jinping e a China forem subitamente transformados em aliados secretos de Trump dentro da narrativa de QAnon, isso criará uma janela de oportunidade para as organizações de mídia estatal chinesa começarem a promover um relacionamento com o público da conspiração ocidental.”

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QAnon é pró-Putin em guerra, por isso se aproxima de China

Com a guerra na Ucrânia iniciada pela Rússia, seguidores do QAnon assumiram uma posição fortemente pró-Putin, pois, aparentemente, acreditaram em muitos dos pretextos do governo russo para invadir o território vizinho.

Nesse contexto, os esforços de Putin para construir uma aliança com a China representam um desafio narrativo, explica Elise Thomas: se Putin está trabalhando secretamente com Trump e um dos ‘mocinhos’, mas simultaneamente quer ser aliado de Xi Jinping, isso significa que Xi Jinping também é um ‘bom rapaz’?

As tentativas de resolver esse conflito narrativo parecem estar impulsionando a mudança para uma posição mais pró-China:

“A teoria da conspiração QAnon geralmente evolui por tentativa e erro. Diferentes versões de narrativas potenciais são lançadas na comunidade, com aquelas que ganham mais força tornando-se a versão aceita.

Atualmente, estamos em tal fase de evolução, onde diferentes versões de uma narrativa QAnon pró-China estão sendo testadas.”

Na análise, foi identifica uma versão difundida em grupos do QAnon que tenta posicionar Xi Jinping como um herói — apesar da oposição de longa data que o grupo tem a ele e seu país.

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Essa nova narrativa alega que Xi está trabalhando secretamente contra o Partido Comunista Chinês, em colaboração com Trump e Putin (às vezes ao lado de outros líderes como Narendra Modi, da Índia, e Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita) para derrubar a “cabala global maligna”, uma das teorias conspiratórias base do grupo de extrema-direita.

Relacionar o “combate” de Xi Jinping ao próprio partido é uma narrativa paralela à outra teoria base do QAnon: a de que Trump, como presidente, estava trabalhando contra o “Estado Profundo” (aquele que exerce o verdadeiro poder) dentro do governo dos EUA. Isso pode torná-la mais crível para os seguidores do QAnon, explica a autora.

Em outra tentativa de recontar a ideia de que a China tem trabalhado secretamente com Trump o tempo todo, alguns membros do grupo conspiracionista estão sugerindo que a característica pronúncia de “China” feita pelo ex-presidente é de fato uma referência codificada à Ucrânia.

Isso significaria que os comentários negativos que Trump fez sobre a China durante e depois de sua presidência eram, na verdade, referências à Ucrânia, e não à China.

Uma consequência dessa mudança nas percepções sobre a China pelo QAnon afeta Taiwan, apontou a análise:

“Se Taiwan está para a China como a Ucrânia está para a Rússia, então nesta narrativa Taiwan (como a Ucrânia) também deve ser má.

Alguns seguidores do QAnon estão começando a falar com animação sobre uma operação de “limpeza” da China em Taiwan, enquanto a Rússia está “limpando” a Ucrânia.”

Relação QAnon-China pode afetar democracias no Ocidente

Para a autora Elise Thomas, há algumas evidências iniciais de que a propaganda pró-Kremlin pode servir como porta de entrada para o QAnon e o público da conspiração na propaganda estatal chinesa.

“À medida que a mídia estatal da China e seus diplomatas começaram a amplificar a teoria da conspiração dos biolaboratórios dos EUA nas mídias sociais, as contas de propaganda pró-Kremlin têm compartilhado conteúdo de seus colegas chineses.

Por sua vez, o público do QAnon está absorvendo o conteúdo estatal chinês por meio de contas de propaganda pró-Kremlin.”

Por exemplo, o print abaixo mostra um tweet de Liu Xin, apresentador sênior do canal de mídia estatal chinês CGTN, sendo compartilhado no canal QAnon Midnight Rider no Telegram por meio do canal pró-Kremlin Intel Slava Z.

Telegram screenshot

A relação QAnon-China ainda não está totalmente consolidada, destaca a autora do artigo. No entanto, o Ocidente precisa ficar atento ao movimento, pois não é trivial e pode impactar as democracias da região.

“As consequências da influência da mídia estatal russa e da propaganda sobre as comunidades conspiratórias ocidentais e americanas ficaram claras nas últimas semanas.

Uma teoria da conspiração com a qual o estado russo teve sucesso limitado fora da Rússia desde a primeira vez em 2001, de repente saltou para as telas e ondas de audiência nos EUA e em todo o mundo – não devido a nenhuma inovação surpreendente do sistema de propaganda russo, mas porque atingiu um acorde com os teóricos da conspiração ocidentais.”

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