Londres – As cenas mais impactantes do fotojornalismo em 2022 foram apontadas esta semana em Amsterdรฃ pelo jรบri do World Press Photo Contest, principal concurso de fotografia jornalรญstica do mundo.
Pela quinta vez em 67 anos, uma mulher levou o prรชmio principal, o de Foto do Ano. A imagem capturada pela canadense Amber Bracken, de cruzes com vestidos pendurados, รฉ um tributo ร morte de crianรงas indรญgenas em internatos de ‘assimilaรงรฃo cultural’ no Canadรก, muitas enterradas de forma anรดnima.
O drama dos indรญgenas da Amazรดnia visto pelas lentes do brasileiro Lalo de Almeida tambรฉm foi premiado. Um conjunto de fotos retratando a destruiรงรฃo da floresta e as consequรชncias para as pessoas que nela vivem foi eleito o melhor na categoria Projetos de Longo Prazo.
Concurso de fotografia recebeu quase 65 mil inscriรงรตes
Os jurados da ediรงรฃo 2022 da premiaรงรฃo escolheram os quatro vencedores globais entre quase 65 mil trabalhos submetidos ao concurso de fotografia por mais de quatro mil profissionais de 130 paรญses.
Alรฉm de Almeida e Bracken, o trabalho do australiano Matthew Abott sobre o uso de queimadas controladas para controlar o meio ambiente foi o melhor na categoria Reportagem Fotogrรกfica.
E o da equatoriana Isadora Romero sobre a conservaรงรฃo de sementes ancestrais venceu em Formato Aberto.
A presidente do jรบri, Rena Effendi, destacou a interconexรฃo entre os trabalhos ganhadores do concurso em 2022:
“Os quatro, de maneira รบnica, abordam as consequรชncias da corrida da humanidade pelo progresso e seus efeitos devastadores sobre o planeta.
Esses projetos nรฃo apenas refletem sobre a urgรชncia imediata da crise climรกtica, mas tambรฉm nos dรฃo uma visรฃo de possรญveis soluรงรตesโ.
Este ano o concurso de fotografia foi dividido em sete regiรตes: รfrica, รsia, Europa, Amรฉrica do Norte e Central, Amรฉrica do Sul e Sudeste Asiรกtico e Oceania. Dentre os vencedores de cada uma das quatro categorias nas regiรตes foi escolhido o campeรฃo global.
Veja os melhores do concurso de fotografia World Press Photo
Melhor Foto do Ano: Escola Residencial Kamloops, por Amber Bracken, Canadรก
A autora da foto, Amber Bracken, รฉ reconhecida por documentar questรตes relacionadas aos povos indรญgenas da Amรฉrica do Norte.
Ela trabalha como freelancer, e a fotografia que venceu o concurso foi feita para o New York Times. Uma caracterรญstica รบnica do trabalho รฉ que pela primeira vez nos 67 anos do World Press Photo, a imagem do ano nรฃo tem uma pessoa como objeto.
Bracken capturou a imagem de vestidos vermelhos pendurados em cruzes ao longo de uma estrada para homenagear crianรงas que morreram na Kamloops Indian Residential School, um internato que funcionou na รฉpoca colonial em British Columbia para assimilar crianรงas indรญgenas. No local foram encontradas 215 sepulturas anรดnimas.
No vรญdeo, ela conta a histรณria por trรกs da imagem.
Os internatos comeรงaram a funcionar no sรฉculo 19, como parte de uma polรญtica de assimilaรงรฃo forรงada de pessoas de vรกrias comunidades indรญgenas ร cultura ocidental dos colonizadores e missionรกrios europeus.
Mais de 150.000 estudantes foram removidos ร forรงa de suas casas e famรญlias, muitas vezes proibidos de se comunicar em seus prรณprios idiomas, sujeitos a abuso fรญsico e ร s vezes sexual.
Uma Comissรฃo de Verdade e Reconciliaรงรฃo concluiu que pelo menos 4.100 estudantes morreram enquanto estavam nos internatos. A Escola Kamloops foi apontada como o local onde mais fatalidades aconteceram.
Em maio de 2021, uma pesquisa usando radar de penetraรงรฃo no solo identificou atรฉ 215 possรญveis locais de sepultamento de jovens em Kamloops, confirmando relatos de histรณrias reais.
O trauma intergeracional de internatos para jovens das etnias Cree e Metis, a luta por direito ร terra e o drama dos indรญgenas deslocados de seus territรณrios histรณricos sรฃo temas recorrentes no trabalho da fotojornalista canadense, que destaca a atualidade dessas questรตes:
โA histรณria colonial nรฃo รฉ uma histรณria antiga […], รฉ uma histรณria viva, com a qual os sobreviventes ainda estรฃo lutando. Se queremos falar sobre reconciliaรงรฃo ou cura, precisamos realmente manter e honrar o coraรงรฃo que ainda existe lรก.โ
A histรณria da escola ganhou relevรขncia novamente este mรชs, quando o Papa Francisco pediu desculpas a uma delegaรงรฃo canadense pelo papel da Igreja Catรณlica no sistema de internatos do paรญs.
Melhor Reportagem Fotogrรกfica do Ano: Salvando florestas com fogo, por Matthew Abbott, para a National Geographic
Na sรฉrie de fotografias que venceu o concurso na categoria Reportagem Fotogrรกfica, o australiano Matthew Abbott, reconhecido por documentar temas sociais, culturais e polรญticos de seu paรญs, conta uma histรณria pouco conhecida.
Saving Forests with Fire registra o trabalho da populaรงรฃo nativa Nawarddeken, proprietรกria tradicional de uma รกrea de mais de 1,39 milhรฃo de hectares em West Arnhem Land, no norte da Austrรกlia. Eles provocam incรชndios controlados como instrumento para evitar grandes queimadas na temporada seca.
O fotรณgrafo acompanhou os habitantes da reserva para registrar a prรกtica conhecida como queima fria, pela qual os incรชndios se movem lentamente, queimam apenas a vegetaรงรฃo rasteira e removem o acรบmulo de material combustรญvel que alimenta as chamas maiores.
Ele contou que conheceu o trabalho em 2008, quando morou e trabalhaou em Arnhem Land e foi convidado para uma caminhada na mata com o povo Nawarddeken.
Mais de 10 anos depois voltou, desta vez pela National Geographic, para trabalhar em uma reportagem mostrando como os Nawarddeken queimam estrategicamente suas terras para evitar incรชndios florestais destrutivos e como esse processo ajuda a salvar o meio ambiente.
Os guardas da Warddeken combinam o conhecimento tradicional com tecnologias contemporรขneas, como queima aรฉrea e mapeamento digital. Alรฉm de protegerem a floresta, a prรกtica diminui emissรตes de CO2.
Veja a sรฉrie completa
“Anciรฃo Nawarddeke, Conrad Maralngurra, queima a vegetaรงรฃo rasteira para proteger a comunidade de Mamadawerre de incรชndios florestais no final da temporada. O fogo vai morrer naturalmente ร noite, uma vez que a temperatura cai e os nรญveis de umidade aumentam”.
“Fumaรงa de uma queimada fria cobre o Vale Dajalama, em West Arnhem, no inรญcio da estaรงรฃo seca no Norte da Austrรกlia”.
“Em Stacy Lee, a casca das รกrvores รฉ incinerada e produz uma fonte de luz natural para ajudar a caรงar cobras (Acrochordus arafurae), em Djulkar, Arnhem Land, Austrรกlia”.
“A figura de um canguru entre dezenas de outras pinturas de arte rupestre no telhado de uma caverna em Arnhem. A cada ano, os sรญtios arqueolรณgicose sรฃo limpos dos detritos que podem queimar e destruir as pinturas antigas“.
“Um tipo de falcรฃo preto voa sobre uma queimada feita por caรงadores em Mamadawerre. A ave, tambรฉm conhecida como falcรฃo do fogo, รฉ nativa do norte e leste da Austrรกlia e caรงa perto de incรชndios, capturando grandes insetos, pequenos mamรญferos e rรฉpteis que fogem das chamas”.
“Um helicรณptero solta bolas de fogo do tamanho de bolas de pingue-pongue para criar pequenos incรชndios, numa queima controlada em Capari”.
โDurante cinco dias de caminhada em vรกrias propriedades do clรฃ no inรญcio da estaรงรฃo seca, uma famรญlia segue uma fogueira acesa para outros membros do clรฃ, para ajudar a orientรก-los em sua viagem e para limpar a terra, prevenindo incรชndios destrutivosโ.
Melhor Projeto de Longo Prazo: Distopia Amazรดnia, por Lalo de Almeida, para Folha de Sรฃo Paulo/Panos Pictures
O fotรณgrafo brasileiro Lalo de Almeida conquistou o primeiro lugar na categoria Projetos de Longo Prazo do World Press Photo Contest.
Em Distopia Amazรดnica, que havia sido premiada na etapa regional do concurso, Almeida documentou ao longo de 12 anos os efeitos sociais, polรญticos e ambientais do desmatamento, mineraรงรฃo e exploraรงรฃo de recursos na Amazรดnia brasileira, como ele conta no vรญdeo.
O fotรณgrafo รฉ um veterano premiado no World Press Photo Awards. Em 2021, ganhou na categoria Sรฉrie Meio Ambiente com uma foto dos incรชndios no Pantanal e em 2017 na categoria Questรตes Contemporรขneas.
Ao anunciar os vencedores, a organizaรงรฃo do World Press Photo destacou a crise que afeta a Amazรดnia como justificativa para a escolha do trabalho do fotojornalista brasileiro.
โDesde 2019, a devastaรงรฃo da Amazรดnia brasileira vem ocorrendo em seu ritmo mais rรกpido.
A exploraรงรฃo nรฃo sรณ tem efeitos devastadores no ecossistema da Amazรดnia, com sua extraordinรกria biodiversidade, mas tambรฉm gera uma sรฉrie de impactos sociais, particularmente nas comunidades indรญgenas forรงadas a lidar com a degradaรงรฃo significativa de seu meio ambiente, bem como com de seu modo de vida.โ
Lalo de Almeida acredita que nรฃo se pode separar as questรตes ambientais e sociais .
โA maioria das cidades com altos nรญveis de desmatamento tambรฉm apresentam altos nรญveis de pobreza. Sรฃo elementos completamente conectados: pobreza, violรชncia, degradaรงรฃo ambiental e desmatamento.โ
Veja algumas das fotos da sรฉrie e o relato de Lalo de Almeida sobre as cenas
“Mulheres e crianรงas da comunidade Pirahรฃ, ao lado de seu acampamento ร s margens do rio Maici, observam os motoristas que passam na rodovia Transamazรดnica esperando receber lanches ou refrigerantes.”
Humaitรก, Amazonas, Brasil, em 21 de setembro de 2016.
“Vista aรฉrea da construรงรฃo da Barragem de Belo Monte no Rio Xingu. Mais de 80% da รกgua do rio foi desviada de seu curso natural para construir o projeto hidrelรฉtrico.
A reduรงรฃo drรกstica no fluxo de รกgua tem um impacto adverso tanto sobre meio ambiente quanto nos meios de subsistรชncia das comunidades tradicionais.”
Altamira, Parรก, Brasil, em 3 de setembro de 2013.
“Membros da comunidade Munduruku fazem fila para embarcar em aviรฃo no Aeroporto de Altamira. Apรณs protestar no local da construรงรฃo da barragem de Belo Monte, no Rio Xingu, eles viajaram para Brasรญlia a fim de apresentar suas demandas ao governo.
A comunidade Munduruku habita as margens de outro afluente do Amazonas, o rio Tapajรณs, a vรกrias centenas de quilรดmetros de distรขncia, onde o governo tem planos de construir mais projetos hidrelรฉtricos.
Apesar da pressรฃo de indรญgenas, ambientalistsas e organizaรงรตes nรฃo governamentais, o projeto de Belo Monte foi construรญdo e concluรญdo em 2019″.
Parรก, Brasil, em 14 de junho de 2013.
“Menino descansa em tronco de รกrvore morta no Rio Xingu em Paratizรฃo, comunidade localizada prรณxima ร hidrelรฉtrica de Belo Monte. Ele estรก cercado por restos de รกrvores mortas, formadas apรณs a inundaรงรฃo do reservatรณrio”.
Parรก, Brasil, em 28 de agosto de 2018.
“Vira-latas observam carne pendurada em um aรงougue na Vila da Ressaca, uma รกrea anteriormente explorada por ouro, mas agora quase completamente abandonada, em Altamira”.
Parรก, Brasil, em 2 de setembro de 2013.
“Um outdoor com uma mensagem de apoio ao presidente Bolsonaro ao lado da Rodovia Transamazรดnica. Foi financiado por agricultores locais”.
Altamira, Parรก, Brasil, em 20 de julho de 2020.
“O desmatamento maciรงo รฉ evidente em Apuรญ, municรญpio ao longo da Rodovia Transamazรดnica, sul da Amazรดnia. O local รฉ um dos municรญpios mais desmatados da regiรฃo.”
Amazรดnia, Brasil, em 24 de agosto de 2020.
“Um integrante de uma comunidade afro-brasileira composta por negros, alguns dos quais descendentes de povos escravizados do continente africano โ estรก desmaiado bรชbado em um banco, em Pedras Negras, Sรฃo Francisco do Guaporรฉ.
O processo de concessรฃo de tรญtulos de terra para comunidades iniciado por ex-escravizados jรก era lento antes da eleiรงรฃo de Jair Bolsonaro. Agora parou completamente, como resultado da decisรฃo do presidente de nรฃo demarcar mais terras para essas comunidades quilombolas na Amazรดnia. “
Rondรดnia, Brasil, em 29 de janeiro de 2021.
Melhor fotografia em Formato Aberto: Sangue รฉ uma semente, por Isadora Romero Equador
A vencedora do concurso World Press Photo na categoria Formato Aberto foi a equatoriana Isadora Romero, com um vรญdeo formado por uma sequรชncia de fotografias intitulado La Sangre Es Una Semilla (O sangue รฉ uma semente).
Ela se descreve como uma profissional que explora a fronteira entre arte e fotojornalismo, como no trabalho premiado.
Partindo da histรณria familiar pessoal da prรณpria artista, o projeto questiona o desaparecimento de sementes, a migraรงรฃo forรงada, o racismo, a colonizaรงรฃo e a perda de conhecimento ancestral.
O vรญdeo premiado no concurso รฉ composto por fotografias digitais e cinematogrรกficas, algumas tiradas em filme 35mm vencido e posteriormente desenhadas pelo pai da fotรณgrafa.
Durante o sรฉculo 20, 75% da diversidade genรฉtica de plantas agrรญcolas foi perdida globalmente. A principal forรงa motriz do declรญnio da agrobiodiversidade รฉ o impulso para o cultivo de monoculturas de variedades modificadas e muitas vezes nรฃo nativas, para obter culturas de maior rendimento.
Em uma viagem ร sua aldeia ancestral de Une, Cundimamarca, Colรดmbia, a fotรณgrafa explorou memรณrias esquecidas da terra e das colheiras e aprendeu sobre seu avรด e bisavรด que eram โguardiรตes de sementesโ e cultivavam vรกrias variedades de batata, apenas duas das quais ainda existem.
Assista ao vรญdeo vencedor.
โPerder diversidade e variedades de sementes nรฃo estรก apenas nos afetando como comunidade porque estamos perdendo nutrientes e provavelmente algumas espรฉcies desaparecerรฃo completamente.
A memรณria cultural tambรฉm estรก se perdendo. Esse conhecimento foi passado de geraรงรฃo em geraรงรฃo, e geralmente nรฃo รฉ validado pela comunidade cientรญfica ocidental.
Acho muito importante entender como estamos perdendo essa memรณria.โ, diz a fotรณgrafa.
Veja tambรฉm as vencedoras de um concurso de fotografia colorida
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