Londres – O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa foi celebrado este ano em meio a uma crise combinando todos os elementos que fazem parte do rol de preocupações de jornalistas, veículos, organizações que defendem a liberdade de imprensa, incluindo a polarização da mídia.
Na guerra entre a Rússia e a Ucrânia há ameaças físicas, com jornalistas emboscados, torturados e mortos. Há perseguição judicial, com uma lei draconiana que pune com 15 anos de cadeia quem veicular fake news sobre a guerra − ou chamá-la de guerra e não de “operação especial”.
Há ataques cibernéticos, com o uso de ferramentas de espionagem e disseminação de propaganda política em larga escala. E há o que a organização Repórteres Sem Fronteiras destacou no World Press Freedom Index 2022: a polarização da mídia como o maior risco para o jornalismo livre, apontando a americana Fox News como referência desse modelo.
Polarização da mídia: divisões internas e externas
Nas sociedades democráticas, o desenvolvimento de meios de opinião sobre o modelo Fox News e a banalização dos circuitos de desinformação, amplificados pelo funcionamento das redes sociais, estão causando um aumento nas divisões.
No nível internacional, a assimetria entre, por um lado, sociedades abertas e, por outro lado, regimes despóticos que controlam seus meios de comunicação e plataformas travando guerras de propaganda, enfraquece as democracias. Em ambos os níveis, essa dupla polarização é um fator na intensificação das tensões.
O conflito Rússia x Ucrânia é um exemplo perfeito (ou muito imperfeito) dessas preocupações. A mídia independente russa foi praticamente extinta. Restaram veículos estatais cujo conteúdo é assustador, tachando de inimigos os cidadãos que discordam da invasão ao país vizinho.
A mídia estatal ultrapassa as fronteiras russas, sobretudo por meio das redes controladas pelo governo, como a RT (Russia Today).
Ou por veículos internacionais, como a americana Fox News, que embora não apoie a invasão como linha editorial permite que comentaristas como Tucker Carlson defendam o indefensável, ao ponto de dizer que a mídia exagera na cobertura.
A polarização alimentada pela ‘mídia de opinião’
O fenômeno não ocorre somente nos EUA. A RSF destacou o crescimento da “opinion media” (mídia de opinião, em tradução literal) especialmente na França, nomeando a Fox News como referência.
O secretário-geral da RSF, Christophe Deloire, disse:
” A ‘Fox News-ization’ da mídia representa um perigo fatal para as democracias porque mina a base da harmonia civil e do debate público tolerante”
Considerando que não é um erro a mídia expressar uma opinião, como acontece nos editorias e artigos de colunistas e programa de debates, o melhor termo para classificar esse tipo de veículo poderia ser ‘mídia engajada’ que não apenas defende uma opinião como promove teses nem sempre alinhadas com a ciência ou com princípios universais de respeito ao ser humano.
No Reino Unido essa proliferação também acontece, na esteira das divisões na sociedade causadas pelo Brexit. O tumultuado processo de saída do país na União Europeia tirou alguns gênios da garrafa, como a aversão a imigrantes e o desprezo por outras religiões e culturas.
Uma emissora de TV, a GBNews, foi criada em 2021 para dar voz aos que defendem essas teses, e outras como o ‘libera geral’ quando o país vivia o auge da crise da pandemia.
Ela não decolou em audiência, mas está lá, dando espaço para figuras radicais como Nigel Farage, ídolo da extrema direita. E tem plateia, senão já teria saído do ar.
Abrigar opiniões divergentes é essência do jornalismo A diferença para o jornalismo profissional que defende um partido político, como no caso dos jornais britânicos, e o modelo Fox News criticado pela RSF é o limite entre opinião e desinformação.
O próprio Tucker Carlson admitiu que verdade não é algo essencial em seu trabalho. Em uma entrevista, ele disse que se esforça para não mentir, inferindo-se que nem sempre consegue.
Ao criticar a cobertura da mídia sobre a guerra, Carlson ignora os fatos: número de mortes, ataques cruéis a civis e colegas de profissão emboscados mesmo identificados como jornalistas. E coloca a audiência contra quem informa com precisão.
Benjamim Hall, correspondente Fox News (foto Twitter) e Tucker Carlson (foto: divulgação Fox News)
Além da polarização da mídia, riscos digitais para a liberdade de imprensa
As entidades de liberdade de imprensa, a Federação Internacional de Jornalistas e organismos internacionais como ONU e Unesco também chamaram a atenção no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa para os riscos digitais, em dois níveis.
O outro é o efeito das redes sociais na polarização da mídia e no fortalecimento do ódio contra o jornalismo, que tem impacto direto sobre a liberdade de imprensa na medida em que intimida os profissionais e em alguns casos resulta em ataques físicos e mortes.
Vincent, que atua na linha de frente acompanhando o caso de Julian Assange, acha que a regulamentação é necessária, pois “ficou para trás o tempo em havia esperança de que as plataformas resolveriam os problemas sozinhas”.
Mas defende que a liberdade de expressão deve ser assegurada, protegendo-se fontes e o trabalho dos jornalistas cidadãos. O difícil é achar o ponto de equilíbrio.
Datas como o Dia da Liberdade de Imprensa passam, e palavras se perdem no tempo.
Mas o que statements e relatórios como o da RSF levantaram este ano é vital não apenas para jornalistas, mas para a sociedade. E não deveria ficar esquecido até 3 de maio de 2023.
Jornalista baseada em Londres, é co-fundadora e Editora-chefe do MediaTalks. É também colunista de mídia e comunicação no J&Cia/Portal dos Jornalistas. Faz parte da FPA London (Foreign Press Association).