Londres – O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa foi celebrado este ano em meio a uma crise combinando todos os elementos que fazem parte do rol de preocupações de jornalistas, veículos, organizações que defendem a liberdade de imprensa, incluindo a polarização da mídia.
Na guerra entre a Rússia e a Ucrânia há ameaças físicas, com jornalistas emboscados, torturados e mortos. Há perseguição judicial, com uma lei draconiana que pune com 15 anos de cadeia quem veicular fake news sobre a guerra − ou chamá-la de guerra e não de “operação especial”.
Há ataques cibernéticos, com o uso de ferramentas de espionagem e disseminação de propaganda política em larga escala. E há o que a organização Repórteres Sem Fronteiras destacou no World Press Freedom Index 2022: a polarização da mídia como o maior risco para o jornalismo livre, apontando a americana Fox News como referência desse modelo.
Polarização da mídia: divisões internas e externas
Na abertura do documento, que trouxe o Brasil em 110º lugar entre 180 nações, a RSF aponta um duplo efeito do que chama de “polarização amplificada pelo caos da informação”.
Nas sociedades democráticas, o desenvolvimento de meios de opinião sobre o modelo Fox News e a banalização dos circuitos de desinformação, amplificados pelo funcionamento das redes sociais, estão causando um aumento nas divisões.
No nível internacional, a assimetria entre, por um lado, sociedades abertas e, por outro lado, regimes despóticos que controlam seus meios de comunicação e plataformas travando guerras de propaganda, enfraquece as democracias. Em ambos os níveis, essa dupla polarização é um fator na intensificação das tensões.
O conflito Rússia x Ucrânia é um exemplo perfeito (ou muito imperfeito) dessas preocupações. A mídia independente russa foi praticamente extinta. Restaram veículos estatais cujo conteúdo é assustador, tachando de inimigos os cidadãos que discordam da invasão ao país vizinho.
A mídia estatal ultrapassa as fronteiras russas, sobretudo por meio das redes controladas pelo governo, como a RT (Russia Today).
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Ou por veículos internacionais, como a americana Fox News, que embora não apoie a invasão como linha editorial permite que comentaristas como Tucker Carlson defendam o indefensável, ao ponto de dizer que a mídia exagera na cobertura.
A polarização alimentada pela ‘mídia de opinião’
O fenômeno não ocorre somente nos EUA. A RSF destacou o crescimento da “opinion media” (mídia de opinião, em tradução literal) especialmente na França, nomeando a Fox News como referência.
O secretário-geral da RSF, Christophe Deloire, disse:
” A ‘Fox News-ization’ da mídia representa um perigo fatal para as democracias porque mina a base da harmonia civil e do debate público tolerante”
Considerando que não é um erro a mídia expressar uma opinião, como acontece nos editorias e artigos de colunistas e programa de debates, o melhor termo para classificar esse tipo de veículo poderia ser ‘mídia engajada’ que não apenas defende uma opinião como promove teses nem sempre alinhadas com a ciência ou com princípios universais de respeito ao ser humano.
No Reino Unido essa proliferação também acontece, na esteira das divisões na sociedade causadas pelo Brexit. O tumultuado processo de saída do país na União Europeia tirou alguns gênios da garrafa, como a aversão a imigrantes e o desprezo por outras religiões e culturas.
Uma emissora de TV, a GBNews, foi criada em 2021 para dar voz aos que defendem essas teses, e outras como o ‘libera geral’ quando o país vivia o auge da crise da pandemia.
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Ela não decolou em audiência, mas está lá, dando espaço para figuras radicais como Nigel Farage, ídolo da extrema direita. E tem plateia, senão já teria saído do ar.
Abrigar opiniões divergentes é essência do jornalismo A diferença para o jornalismo profissional que defende um partido político, como no caso dos jornais britânicos, e o modelo Fox News criticado pela RSF é o limite entre opinião e desinformação.
O próprio Tucker Carlson admitiu que verdade não é algo essencial em seu trabalho. Em uma entrevista, ele disse que se esforça para não mentir, inferindo-se que nem sempre consegue.
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Ao criticar a cobertura da mídia sobre a guerra, Carlson ignora os fatos: número de mortes, ataques cruéis a civis e colegas de profissão emboscados mesmo identificados como jornalistas. E coloca a audiência contra quem informa com precisão.
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Além da polarização da mídia, riscos digitais para a liberdade de imprensa
As entidades de liberdade de imprensa, a Federação Internacional de Jornalistas e organismos internacionais como ONU e Unesco também chamaram a atenção no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa para os riscos digitais, em dois níveis.
Um é a vigilância. A Federação cobrou ação para impedir o uso de spyware para espionar jornalistas, como vem acontecendo com frequência cada vez maior.
O outro é o efeito das redes sociais na polarização da mídia e no fortalecimento do ódio contra o jornalismo, que tem impacto direto sobre a liberdade de imprensa na medida em que intimida os profissionais e em alguns casos resulta em ataques físicos e mortes.
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Em uma conversa com a diretora de campanhas globais da RSF, Rebecca Vincent, durante um encontro com jornalistas na FPA (Foreign Press Association) esta semana, ela fez uma observação sobre as iniciativas regulatórias em curso no Reino Unido e na União Europeia.
Vincent, que atua na linha de frente acompanhando o caso de Julian Assange, acha que a regulamentação é necessária, pois “ficou para trás o tempo em havia esperança de que as plataformas resolveriam os problemas sozinhas”.
Mas defende que a liberdade de expressão deve ser assegurada, protegendo-se fontes e o trabalho dos jornalistas cidadãos. O difícil é achar o ponto de equilíbrio.
Datas como o Dia da Liberdade de Imprensa passam, e palavras se perdem no tempo.
Mas o que statements e relatórios como o da RSF levantaram este ano é vital não apenas para jornalistas, mas para a sociedade. E não deveria ficar esquecido até 3 de maio de 2023.
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