Em um ano que comeรงou sombrio para o jornalismo no mundo, com os trรชs primeiros meses registrando a metade de mortes de jornalistas de todo o ano de 2021, a semana que passou foi marcada por uma triste coincidรชncia: quatro novas vรญtimas fatais, todas mulheres.

Apesar de todos os casos serem chocantes, cada um teve repercussรตes diferentes associadas aos contextos sociais e polรญticos dos paรญses em que aconteceram. 

No Mรฉxico, Yessenia Mollinedo Falconi e Sheila Johana Garcรญa Olivera, de um blog comunitรกrio, foram assassinadas por pistoleiros. No Chile, Francesca Sandoval repรณrter de uma emissora regional, nรฃo resistiu aos tiros que levou ao cobrir uma manifestaรงรฃo no Dia do Trabalho. Na Cisjordรขnia, Shireen Abu Akleh, uma conhecida jornalista da rede internacional Al Jazeera, foi baleada enquanto acompanhava uma operaรงรฃo do exรฉrcito israelense.

Funeral de repรณrter da Al Jazeera รฉ marcado por conflitos com a polรญcia

O caso de Shireen Abu Akleh, palestina que tambรฉm tinha cidadania americana, foi o que gerou mais comoรงรฃo e manifestaรงรตes internacionais.

Ela foi baleada na cabeรงa durante a cobertura de uma operaรงรฃo militar na Cisjordรขnia. Usava um colete ร  prova de balas com a palavra “Imprensa” e um capacete, e estava acompanhada de outros profissionais de mรญdia, que acusaram soldados israelenses de tรช-la alvejado de forma intencional. 

A confirmaรงรฃo de sua morte comoveu os palestinos, que acompanhavam seu trabalho na televisรฃo hรก mais de 20 anos. O funeral foi marcado para sexta-feira (13), em uma igreja de Jerusalรฉm, e reuniu milhares de pessoas para se despedir da jornalista.

O que era para ser uma cerimรดnia fรบnebre acabou virando protesto, com confrontos violentos entre palestinos e a polรญcia israelense. Isso porque o caixรฃo de Abu Akleh foi coberto com uma bandeira da Palestina durante o cortejo.

Israel proรญbe a exibiรงรฃo de bandeiras palestinas em espaรงos pรบblicos, o que levou a polรญcia a agir contra as pessoas que carregavam o caixรฃo e outras que tambรฉm carregavam o sรญmbolo.

As imagens sรฃo de completo horror: guardas agridem palestinos, enquanto o caixรฃo da jornalista รฉ equilibrado na confusรฃo. Em algumas imagens, รฉ possรญvel ver que o caixรฃo quase cai no chรฃo durante o conflito.

https://twitter.com/malonebarry/status/1525111238077841410

https://twitter.com/shereen_allam/status/1525160190957477888

A morte de Abu Akleh seguida pelos confrontos em seu funeral repercutiram em todo o mundo. Segundo a organizaรงรฃo Crescente Vermelho, 33 pessoas ficaram feridas nos tumultos. A polรญcia israelense comunicou que seis pessoas foram presas.

O territรณrio palestino รฉ ocupado por Israel desde 1967. As aรงรตes recentes fizeram atรฉ mesmo os Estados Unidos, tradicional aliado israelense, a condeneram a violรชncia na regiรฃo.

“As imagens da intervenรงรฃo policial israelense no cortejo fรบnebre nos perturbaram profundamente”, declarou Antony Blinken, secretรกrio de Estado dos EUA.

Em movimento raro, o Conselho de Seguranรงa da ONU condenou, no sรกbado (14), o assassinato por unanimidade e cobrou “investigaรงรฃo imediata, completa, transparente e imparcial” do caso.

Leia mais

Al Jazeera nega que repรณrter tenha sido vรญtima de fogo cruzado

Shireen Abu Akleh, jornalista da Al Jazeera morta na Palestina

Blinken tambรฉm endossou o pedido por uma investigaรงรฃo “confiรกvel”. Durante voo para Berlim no sรกbado, ele ligou para a famรญlia da jornalista para prestar condolรชncias.

Em conversa com o irmรฃo de Abu Akleh, Blinken falou sobre a “necessidade de uma investigaรงรฃo imediata e confiรกvel sobre as circunstรขncias da morte” dela.

Ele lembrou que ela era uma repรณrter “respeitada em todo o mundo” e reforรงou “a importรขncia de uma imprensa livre e independente”, informou o Departamento de Estado ร  imprensa alemรฃ.

Em nota, a Uniรฃo Europeia (UE) criticou o “uso desproporcional da forรงa e o comportamento desrespeitoso da polรญcia israelense contra os participantes no cortejo fรบnebre”.

“Permitir uma despedida pacรญfica e deixar os enlutados sofrerem em paz sem assรฉdio e humilhaรงรฃo รฉ o mรญnimo respeito humano.

A UE reitera o seu apelo a uma investigaรงรฃo completa e independente que esclareรงa todas as circunstรขncias da morte de Shireen Abu Akleh que leve ร  justiรงa os responsรกveis โ€‹โ€‹pela sua morte.”

A repercussรฃo negativa dos conflitos ocorridos durante o funeral da repรณrter da Al Jazeera morta na Cisjordรขnia fez Israel anunciar uma investigaรงรฃo sobre as aรงรตes de seus agentes de seguranรงa.

“O comissรกrio de polรญcia israelense, em coordenaรงรฃo com o ministro da Seguranรงa Pรบblica, ordenou uma investigaรงรฃo sobre o incidente. As descobertas serรฃo apresentadas ao comissรกrio nos prรณximos dias”, disse a polรญcia israelense em comunicado.

No dia da morte de Abu Akleh, Israel afirmou que ela “provavelmente” morreu ao ser atingida por tiros disparados por combatentes palestinos. Depois, no entanto, o governo apontou que nรฃo poderia descartar uma eventual responsabilidade dos prรณprios soldados.

O Exรฉrcito de Israel afirmou que nรฃo era possรญvel determinar de forma imediata de onde partiu o tiro.

No Mรฉxico, mulheres jornalistas ameaรงadas sรฃo mortas a tiros

Dois dias antes da morte de Shireen Abu Akleh, o Mรฉxico registrou mais violรชncia contra jornalistas. Somente em 2022, 11 profissionais da mรญdia foram assassinados no paรญs — desses, trรชs eram mulheres.

Diferentemente da jornalista da Al Jazeera, Yessenia Mollinedo Falconi e Sheila Johana Garcรญa Olivera nรฃo eram famosas fora de sua cidade. Elas eram respectivamente diretora e repรณrter do site de notรญcias El Veraz em Cosoleacaque, morreram ao serem baleadas do lado de fora de uma loja de conveniรชncia, na segunda-feira (9). Ambas sofriam ameaรงas por causa da cobertura de crimes locais.

O atentado aconteceu no mesmo dia em que os mexicanos se organizavam para protestar contra o 9ยบ jornalista morto neste ano, Luis Enrique Ramรญrez Ramos. Em janeiro, Lourdes Maldonado tambรฉm foi morta a tiros, em crime semelhante ao que vitimou as duas outras colegas na semana passada.

O Mรฉxico รฉ uma grande preocupaรงรฃo para entidades nacionais e estrangeiras defensoras da liberdade de imprensa, que apontam para os crescentes riscos enfrentados por jornalistas mulheres.

Profissionais de veรญculos pequenos e regionais como o El Veraz, onde Yessenia e Sheila trabalhavam, sรฃo maioria entre os crimes contra profissionais de mรญdia registrados no paรญs.

jornalista assassinado assassinato Mรฉxico liberdade de imprensa crime jornalista
Sheila Garcรญa Olivera e Yessenia Mollinedo Falconi (Foto: Reproduรงรฃo/Twitter)

A cidade de Cosoleacaque fica prรณxima a uma importante rota de migrantes comandada pelo crime organizado no sudeste de Veracruz, de acordo com informaรงรตes da agรชncia Associated Press (AP).

Apesar da suspeita de envolvimento de quadrilhas do narcotrรกfico nas mortes das jornalistas, nรฃo houve indicaรงรฃo imediata de quem poderia ter sido o responsรกvel pelos crimes.

A diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, condenou o assassinato das profissionais. “As autoridades mexicanas devem investigar esses assassinatos e tomar todas as medidas necessรกrias para assegurar que os jornalistas poderรฃo trabalhar sem medo”, disse em comunicado.

Segundo a Unesco, cerca de nove em cada 10 casos de assassinatos de jornalistas no mundo nรฃo sรฃo elucidados. Relatรณrio da agรชncia tambรฉm indica que mulheres sรฃo as principais vรญtimas de ataques e assรฉdios online orquestrados.

No Brasil, levantamento recente da Abraji (Associaรงรฃo Brasileira de Jornalismo Investigativo), com apoio do Global Media Defence Fund da Unesco, encontrou padrรฃo semelhante: 127 profissionais e meios de comunicaรงรฃo foram alvo de 119 atos de violรชncia de gรชnero e ataques contra mulheres jornalistas em 2021, voltados sobretudo para as profissionais que cobrem polรญtica.

Leia mais

Mulheres jornalistas ameaรงadas: quem cobre polรญtica รฉ principal alvo de ataques no Brasil

Morte de jornalista no Chile tambรฉm tem protesto nas ruas

A letalidade contra jornalistas mulheres, frequentemente assediadas e ameaรงadas por fazerem seu trabalho, tambรฉm vitimou uma jornalista no Chile na semana passada —  paรญs onde sรฃo raros os crimes contra a imprensa tรฃo comuns em outras naรงรตes latino-americanas. 

Francisca Sandoval, baleada na cabeรงa durante a cobertura de uma passeata no Dia do Trabalho, em Santiago, morreu na quinta-feira (12). Sua morte causou comoรงรฃo entre os chilenos, que, assim como na Palestina, tambรฉm saรญram ร s ruas e foram reprimidos pela polรญcia.

A jornalista de 30 anos documentava uma passeata em 1ยบ de maio no bairro Meiggs para a emissora comunitรกria local Canal Seรฑal 3 La Victoria. Homens armados dispararam contra os participantes, ferindo tambรฉm outros dois jornalistas.

Apรณs 12 dias internada em estado grave, ela morreu em decorrรชncia de uma lesรฃo โ€œmuito graveโ€, que causou hemorragia cerebral e um quadro clรญnico irreversรญvel, informou o chefe da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital de Emergรชncia de Assistรชncia Pรบblica.

Com a notรญcia de sua morte, vigรญlias e memoriais foram feitos em homenagem ร  jornalista no mesmo dia. A emissora Seรฑal 3, onde ela trabalhava, lamentou a morte da profissional nas redes sociais.

โ€œFrancisca nรฃo nos deixou. Eles a assassinaram. Com estas palavras confirmamos o falecimento da nossa amada Franโ€, diz a mensagem no Twitter. โ€œSentiremos sua falta e faremos o possรญvel para encontrar a verdade.โ€

https://twitter.com/tv_piola/status/1524778498916700162

O presidente chileno Gabriel Boric disse que a violรชncia โ€œprejudica a democraciaโ€ do paรญs ao prestar condolรชncias ร  famรญlia da repรณrter.

O protesto contra a morte de Francisca Sandoval, convocado por entidades e estudantes de jornalismo, registrou confrontos com a polรญcia na Plaza de la Dignidad. No Twitter, o Seรฑal 3 La Victoria compartilhou imagens de forรงas policiais dispersando os manifestantes com jatos dโ€™รกgua.

ร‰ possรญvel ver que foi deslocado um grande efetivo de agentes para conter o protesto โ€” que, segundo a mรญdia local, estava pacรญfico atรฉ entรฃo.

https://twitter.com/tv_piola/status/1524908496025571328

A morte de Sandoval causou um choque entre os chilenos, jรก que sรฃo raros os casos de profissionais de imprensa que morrem durante ou em decorrรชncia do trabalho.

Segundo a organizaรงรฃo Repรณrteres sem Fronteiras (RSF), ela รฉ a primeira jornalista a ser morta no paรญs desde Josรฉ Carrasco Tapia, assassinado em 1986, durante a ditadura militar.

O Chile nรฃo estรก entre as naรงรตes com situaรงรฃo de liberdade de imprensa mais crรญtica no mundo e nem na Amรฉrica Latina, ocupando a 82ยช posiรงรฃo entre 180 paรญses no รญndice global de liberdade de imprensa da RSF, publicado em 3 de maio. 

Apesar disso, a organizaรงรฃo alerta para uma crescente hostilidade em relaรงรฃo ร  imprensa no Chile, que remonta aos protestos de 2019, iniciados contra o aumento nas passagens de metrรด e que escalaram para uma generalizada revolta polรญtica.

โ€œO Chile tem visto um aumento de ameaรงas, campanhas de intimidaรงรฃo (especialmente nas redes sociais) e violรชncia contra jornalistas que cobrem protestos โ€“ violรชncia por manifestantes, policiais e oficiais de inteligรชncia militar โ€“ desde outubro de 2019, quando comeรงou um perรญodo de turbulรชncia polรญtica e social.โ€

No mesmo protesto em que Francisca foi baleada, outros dois profissionais de imprensa tambรฉm ficaram feridos. Fabiola Moreno, repรณrter da Rรกdio 7, foi baleada no ombro, e o repรณrter Roberto Caro, do jornal comunitรกrio Prensa Piensa, foi alvejado na perna. Ambos receberam tratamento mรฉdico e tiveram alta no mesmo dia.

Leia tambรฉm

Violรชncia contra jornalistas em manifestaรงรตes na Amรฉrica Latina preocupa entidades