Londres – Presa há 21 meses na China e julgada a portas fechadas, sem a presença de autoridades diplomáticas de seu país, a jornalista australiana Cheng Lei está com saúde debilitada devido a uma dieta de arroz branco cru e não recebe visitas consulares há vários meses.
A revelação foi feita pelo namorado de Lei, Nick Coyle, que falou pela primeira vez sobre o caso em uma entrevista à Sky News australiana.
Cheng Lei, de 46 anos, está presa na China acusada de “fornecer ilegalmente registros estaduais no exterior” desde agosto de 2020. Ela era âncora da emissora estatal China Global Television Network (CGTN) e sua detenção gerou comoção internacional.
Julgamento da jornalista presa na China a portas fechadas
Em março, ela participou de audiência em um tribunal de Pequim a portas fechadas, sem a presença de jornalistas e diplomatas estrangeiros, incluindo o embaixador da Austrália, Graham Fletcher.
A expectativa era de que sua sentença fosse finalmente decretada, mas o veredito foi adiado para data posterior ainda não divulgada.
A prisão aconteceu em um período de tensões diplomáticas entre a Austrália e a China. Analistas acham que ela pode ter sido capturada como represália a obstáculos comerciais impostos a Pequim.
Nick Coyle disse que o retorno das restrições de covid-19 na China foram a justificativa para a suspensão das visitas consulares mensais e as videochamadas a que Lei tem direito.
Desde que foi presa, a jornalista não mais falou com os dois filhos pequenos, que não estão mais na China, e tem raros contatos com a família.
“Acho isso inaceitável”, disse Nick Coyle sobre o tratamento que a jornalista presa na China está recebendo das autoridades nos últimos meses.
Na entrevista para a Sky News Australia, ele relatou que as visitas consulares mensais “vinham mantendo Lei bem e comunicável desde a prisão”.
“Ela não conseguiu fazer nenhum telefonema para ninguém, talvez três visitas de seu advogado para se preparar para o julgamento e nem um telefonema para a família ou seus filhos.”
Coyle demostrou bastante preocupação com “vários problemas de saúde” da namorada, que pioraram desde a detenção e foram agravados ainda mais por uma dieta de arroz branco cru.
“Felizmente, estamos lidando com a pessoa mais forte que conheço, mental e emocionalmente, mas houve desafios de saúde realmente difíceis ao longo do caminho”, disse ele.
“Ela brincou comigo em mensagem de uma das visitas consulares que o meu café Starbucks era mais caro do que uma semana de sua comida.”
As autoridades chinesas justificam a falta de nutrição adequada aos prisioneiros por “restrições alimentares em Pequim” devido à pandemia.
Corey, que morou na China por muitos anos, não acredita nessas afirmações. “Não houve restrições alimentares em Pequim, falo com as pessoas de lá literalmente todos os dias”, relatou.
“A ideia de que o centro de detenção não conseguiu comida adequada simplesmente não é aceitável.”
Namorado relembra momento em que soube que jornalista foi presa na China
Nick Coyle contou para a Sky News Australia sobre o momento em que descobriu que Cheng Lei tinha desaparecido do apartamento em que morava na China.
Em 13 de agosto de 2020, ele mandou uma mensagem rotineira para ela, mas não teve resposta até o dia seguinte, quando eles deveriam se encontrar.
“Achei isso incomum. Mas pensei, ela está no ramo da TV, sei que as pessoas ficam ocupadas, há prazos e uma série de coisas que poderiam tê-la distraído, então não pensei muito nisso”, lembrou.
Foi só no final da noite, por volta das 19h, que os amigos preocupados de Lei ligaram para Coyle para dizer que não a viam há 24 horas.
“Tentei ligar para ela, o telefone estava desligado. Decidi que não entraria em pânico ainda e tentei ligar para ela novamente mais tarde naquela noite, nada.”
Na manhã seguinte, ele decidiu entrar no apartamento dela com um amigo da jornalista — que mais tarde também foi detido pelas autoridades.
“Entramos no apartamento e tudo parecia normal até que eu pude ver todos os dispositivos eletrônicos, computadores, todo esse tipo de coisa, [tinham desaparecido]. Então ficou bem óbvio para mim o que havia acontecido.”
Coyle lembrou que tudo pareceu “muito estranho, mas pelo menos fazia sentido”.
“Há o momento de ‘oh, m*’ do que isso significa, mas então o lado prático entra em ação, certo, o que fazemos?” disse o namorado de Lei.
Ele acabou ligando para um amigo que trabalhava na embaixada australiana para pedir seu conselho e foi instruído a fazer uma denúncia à polícia chinesa sobre o desaparecimento de Cheng Lei.
Mas ele sabia que seria inútil reportar o sumiço da namorada, e decidiu esperar a notificação da embaixada, que avisaria em até três dias úteis sobre a prisão de um australiano.
Mais tarde, Coyle descobriu que Lei foi havia sido presa pelo Ministério da Segurança do Estado chinês, responsável pela contra-inteligência e inteligência estrangeira e segurança política.
“Foi quando eu pensei ‘sso não é bom’; eu conhecia o sistema o suficiente para saber que é difícil”, disse ele.
Coyle e a família de Cheng Lei ainda estão incertos sobre os motivos da detenção da jornalista, pois as acusações de “fornecer ilegalmente registros estaduais no exterior” não foram esclarecidas.
“Ela é alguém que não estava envolvida na política, não era o mundo dela. Eu provavelmente tinha mais interesse na política chinesa do que ela”, afirmou.
Lei era uma repórter de negócios da emissora chinesa e teria pouca ou nenhuma responsabilidade em cobrir assuntos políticos, segundo o namorado.
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Coyle disse que os dois filhos de Cheng Lei estão em Melbourne e não viram a mãe desde a prisão dela, mas estão “lidando com as coisas da melhor maneira possível”.
“As crianças são resilientes, então tenho certeza de que com o tempo elas vão superar isso, mas essa é ainda mais uma razão pela qual ela precisa voltar. Não é sobre mim, é sobre ela e seus filhos.”
Quem é Cheng Li
Cheng Lei nasceu em Yueyang, província de Hunan, em 1975 e emigrou para a Austrália com seus pais aos dez anos de idade.
Ela tem dois filhos de dez e doze anos. Ambos retornaram à Austrália no início da pandemia de Covid-19 e atualmente estão sendo cuidados pela família de Cheng em Melbourne.
Um membro da família de Cheng na Austrália disse à mídia que acreditava que Cheng não teria feito nada intencionalmente para prejudicar a segurança do estado da China.
Ainda assim, as condições em que vem sendo mantida são severas, segundo relatos.
O governo australiano disse que a jornalista foi inicialmente mantida sob prisão domiciliar. Um acordo bilateral permitiu que representantes do governo australiano a vissem uma vez ao mês. Nesses encontros, a jornalista permaneceria vendada e algemada.
Porém, a emissora australiana ABC informou em fevereiro do ano passadoque Cheng foi trancada em uma cela sem ar fresco ou luz natural, teria enfrentado vários interrogatórios e perdido o direito de escrever cartas e de fazer exercícios.
Após apelos internacionais ao governo com preocupações por sua segurança e bem-estar, um porta-voz do governo chinês anunciou em setembro de 2021 que a jornalista Cheng estava presa a em um local não revelado por motivos de segurança nacional.
A MEAA, associação de jornalistas da Austrália, que faz campanha pela libertação de Cheng, membro da entidade desde 2009, disse que “sua prisão, sua detenção e as acusações contra ela nunca foram explicadas”.
A Federação Internacional de Jornalistas disse em março:
“Cheng Lei foi colocada sob detenção por 19 meses, e as autoridades não revelaram nenhum detalhe da alegação contra ela até o momento.
A FIJ expressa preocupação com a falta de transparência sobre o caso e exige que o governo chinês retire sua acusação arbitrária contra Cheng e a liberte imediatamente para que ela possa voltar para casa na Austrália”.