Londres – A imprensa livre de Hong Kong foi “quase completamente desmantelada” em consequência da censura e de perseguições a jornalistas e veículos, aponta um novo relatório produzido pela ONG britânica Hong Kong Watch. 

Segundo o documento, o espaço das mídias independentes foi ocupado pela mídia estatal pró-Pequim, que segue a narrativa determinada pelo Partido Comunista chinês, assim como acontece com os jornais controlados pelo governo na China. 

Ao mesmo tempo em que o relatório foi publicado, a Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hong Kong (FCCHK, na sigla em inglês) anunciou o cancelamento de seu prêmio anual de Jornalismo e Direitos Humanos, cujos vencedores seriam revelados em 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. 

Censura sobre jornalistas locais e estrangeiros em Hong Kong 

Hong Kong ficou em 148º lugar no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa publicado no dia 3 de maio pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF).  O Brasil ocupa o 11oº lugar e está entre os 10 piores da América Latina

Embora a metodologia da RSF tenha mudado e os autores do estudo não recomendem comparações com o ano passado, a distância de posições é expressiva mesmo descontando-se possível interferência dos novos critérios: em 2021, Hong Kong estava em 80º. 

Ao analisar a situação do país no World Press Freedom Index, a organização afirmou: 

“Outrora um bastião da liberdade de imprensa, a Região Administrativa Especial de Hong Kong da República Popular da China sofreu um revés sem precedentes desde 2020, quando Pequim adotou uma Lei de Segurança Nacional destinada a silenciar vozes independentes.”

É o que mostra, em detalhes, o relatório “Na linha de tiro: A repressão à liberdade de imprensa em Hong Kong”. O documento é de autoria do cofundador e executivo-chefe da Hong Kong Watch, Benedict Rogers, um ativista de direitos humanos e escritor especializado na Ásia.

Ele viveu e trabalhou como jornalista em Hong Kong de 1997 a 2002, e anteriormente também trabalhou na China. 

O amplo conhecimento de Rogers sobre o continente asiático permitiu que ele conduzisse entrevistas com mais de 10 jornalistas de Hong Kong que agora vivem no exílio para retratar a atual situação da imprensa na região.

Relatórios de todas as principais associações globais e locais de defesa à liberdade de imprensa também foram avaliados.

O documento detalha diversos métodos usados pelas autoridades de Hong Kong para restringir a liberdade de imprensa na cidade. Alguns deles são:

  • Violência policial contra profissionais da mídia;
  • Batidas policiais em redações;
  • Fechamento de meios de comunicação independentes;
  • Mudança de gestão nas emissoras públicas, como a Radio Television Hong Kong (RTHK);
  • Lei draconianas que encarceram repórteres e editores.

A repressão à imprensa, aponta o relatório, se desenvolveu desde 2019 e foi intensificada com a imposição da Lei de Segurança Nacional em 1o de julho de 2020.

Desde então, quase todos os meios de comunicação independentes e pró-democracia foram forçados a fechar, 18 jornalistas foram detidos e pelo menos 12 repórteres e executivos da mídia estão presos aguardando julgamento, diz o documento.

“O governo de Hong Kong está usando uma combinação da Lei de Segurança Nacional e acusações antiquadas de direito comum como ‘sedição’ sob a Portaria de Crimes para fazer justiça contra jornalistas.”

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O levantamento aponta que, desde a imposição da Lei de Segurança Nacional, mais de 50 organizações da sociedade civil – incluindo partidos políticos, sindicatos e grupos de mídia – foram dissolvidas.

Uma das poucas organizações que ainda resiste é o Associação de Jornalistas de Hong Kong (HKJA, na sigla em inglês), mas a ONG cita “temores reais” de que ela possa ser o próximo alvo do governo.

“Em janeiro de 2022, o Registro de Sindicatos (RTU) iniciou uma investigação sobre o HKJA, exigindo que o grupo justificasse como algumas de suas atividades são relevantes para seus objetivos.”

“No ano passado, o secretário de Segurança Chris Tang exigiu que o grupo divulgasse sua lista de membros. O presidente do HKJA, Ronson Chan, disse ao The Daily Telegraph: ‘Estou mentalmente preparado para mais interrogatórios policiais’.”

A Hong Kong Watch afirma que vários membros do Comitê Executivo da HKJA já deixaram a ex-colônia com medo de represálias e detenções.

O documento ainda destaca que a polícia de Hong Kong, sob o pretexto da Lei de Segurança Nacional, invadiu as redações das publicações pró-democracia Apple Daily e Stand News e obrigou ambas a fecharem em 2021.

Com a emissora pública RTHK, a ação foi diferente. O veículo perdeu toda a independência e objetividade editorial, encerrou pelo menos 12 programas, excluiu a maior parte de seu arquivo de mais de um ano atrás, excluiu publicações antigas no Twitter e proibiu comentários do público na rede social, aponta a ONG.

“A Força Policial de Hong Kong introduziu uma nova definição de ‘jornalista’, efetivamente impondo restrições a repórteres freelance, jornalistas online, jornalistas estudantes e jornalistas cidadãos.”

As ações oficiais do governo de Hong Kong forçam os próprios grupos de mídia a exercerem uma “extensa autocensura”, diz o relatório.

Dentro dos escritórios públicos, também há obstáculos para dificultar o trabalho dos jornalistas, como novas restrições ao acesso a documentos públicos que foram introduzidas.

Além disso, o governo propõe introduzir uma lei de “notícias falsas” que restringirá ainda mais a liberdade de imprensa, alerta a Hong Kong Watch. Lei semelhante foi imposta na Rússia com o início da guerra da Ucrânia e já prendeu dezenas de jornalistas, enquanto a imprensa internacional tirou suas equipes do país.

“A situação da liberdade de imprensa em Hong Kong é terrível”, resume o relatório da ONG.

“A comunidade internacional deve se manifestar, especialmente para proteger os jornalistas em Hong Kong que continuam tentando, corajosamente, conquistar algum espaço, por mais limitado que seja, e buscar a libertação dos presos ou acusados.”

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Outro ponto de repressão e censura à imprensa de Hong Kong parte dos próprios colegas da mídia pró-Pequim, que continua a atacar e assediar os críticos.

O relatório da Hong Kong Watch dá exemplos de como a imprensa livre da cidade se encolheu ante às constantes perseguições do governo e veículos pró-Pequim.

Chris Wong – um ex-apresentador de notícias da emissora TVB – descreveu à organização suas tentativas de relatar o ataque de novembro de 2019 ao conselheiro pró-democracia Andrew Chiu, que teve a orelha arrancada por uma mordida. O ataque foi evidenciado por fotos e vídeos, observou o relatório.

“Mas quando Chris Wong veio apresentar o relatório do ataque a no noticiário, ele descobriu que estava sendo solicitado a relatar uma versão bastante diferente – e muito estranha.”

“O roteiro que o editor forneceu dizia que a orelha de Chiu caiu naturalmente, de alguma forma. Ninguém fez nada, não foi uma mordida, e a orelha simplesmente caiu no chão. Os editores não queriam cobrir a violência por apoiantes ‘azuis’ pró-Pequim”, disse ele ao Hong Kong Watch.

Wong também disse que eles foram ordenados a chamar os manifestantes de “camisas pretas”, e não de “manifestantes”, e a não cobrir suas coletivas de imprensa — enquanto as da polícia e do governo eram exibidas na íntegra.

“Infelizmente, a TVB prejudicou a reputação de seus jornalistas e, por causa da reputação da TVB, todos os ex-funcionários estão vivendo e trabalhando sob muitas críticas públicas.”

O relatório também detalhou vários atos de violência policial contra jornalistas durante os protestos, incluindo alguns profissionais que pareciam marcados pelos agentes.

“Estávamos sentados no chão e tiramos nosso equipamento, nossas máscaras e capacetes e outros equipamentos de proteção”, disse um fotojornalista do South China Morning Post sobre a cobertura de um protesto.

“A polícia veio e jogou gás lacrimogêneo diretamente em nós. O ódio que a polícia mostrou contra a mídia foi chocante.”

A repressão e a intimidação da mídia de Hong Kong foram incentivadas por veículos pró-Pequim, que agora se beneficiam da redução da indústria, apontou o documento.

“Na ausência de mídia pró-democracia, vale a pena considerar as implicações da erosão da liberdade de imprensa e como isso cria mais espaço para a mídia pró-Pequim”.

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ameaça liberdade imprensa

A organização ainda acusa os veículos de “fornecerem propaganda para o regime do Partido Comunista Chinês e o governo de Hong Kong, ameaçando seus críticos, tanto na imprensa quanto por meio de várias formas de assédio”.

A Hong Kong Watch pediu aos governos internacionais que ofereçam assistência aos jornalistas em fuga de Hong Kong que desejam emigrar e continuar com seu trabalho em língua cantonesa do exterior.

Também pediu aos governos que usem sanções e outras formas de pressão para encorajar o governo de Hong Kong a restaurar as liberdades de mídia.

“A comunidade internacional não deve permitir que os responsáveis ​​por essas violações saiam impunes e sem consequências”.

Como exemplo da extensão da censura em Hong Kong, a própria ONG entrou na linha de tiro do governo. Em março, a organização britânica foi comunicada oficialmente por autoridades de que seu site “representava uma ameaça à segurança nacional da China” e infringia a Lei de Segurança Nacional.

O governo pedia a suspensão do site sob ameaça de multa e prisão para o executivo-chefe da Hong Kong Watch, Benedict Rogers, de até três anos à perpétua.

“O uso da cláusula de extraterritorialidade da Lei de Segurança Nacional, estabelecida no artigo 38 da lei, para ameaçar um ativista e organização estrangeira marca uma nova baixa e representa uma ameaça direta às sociedades livres e potencialmente à liberdade da mídia além das fronteiras de Hong Kong.”

Leia aqui o relatório da Hong Kong Watch na íntegra.

Prêmio de direitos humanos cancelado 

A decisão de cancelar o prêmio anual de Direitos Humanos para jornalistas estrangeiros baseados em Hong Kong diante do cenário de censura foi atribuído pela Associação de Correspondentes Estrangeiros ao ao ambiente de “significativa incerteza” vivido nos últimos dois anos.

O objetivo foi proteger jornalistas do risco de infringirem involuntariamente a Lei de Segurança Nacional. 

Mas a decisão não foi bem aceita por todos. Alguns profissionais integrantes da associação manifestaram-se contra o cancelamento e chegaram a se desligar. 

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