Londres – Em mais um lance da crise que vem abalando severamente a carreira brilhante de um jornalista que chegou a líder de uma das maiores potências do planeta, Boris Johnson conseguiu sobreviver ao voto de desconfiança em uma sessão que acabou às 21h em Londres.

Ele recebeu 211 votos a favor de sua permanência, e 148 votaram contra. Foram 31 votos a mais do que o necessário para se manter no cargo, e ele não pode mais ser desafiado dentro do próprio partido, mas sai extremamente enfraquecido. 

Além de ser uma vitória apertada, evidenciando que menos da metade de seu partido confia nele, ela não tem o poder de reverter o desastre na imagem do premiê, que há mais de seis meses vem sangrando sem parar desde o início do escândalo Partygate – as festas na sede do governo durante o lockdown da covid-19, muitas com a participação dele próprio, multado por quebrar as regras que impôs à população. 

Crise de Boris Johnson começou antes do Partygate 

Logo após o resultado, Boris apareceu nas TVs sorridente e mantendo seu estilo de responder às perguntas dos jornalistas desviando-se do assunto e reafirmando sua agenda positiva, tentando deixar o escândalo para trás. 

Não vai ser fácil, e a maioria dos analistas políticos britânicos acha praticamente impossível. A palavra mais usada para descrever o resultado da votação está sendo “sobrevivência”. 

Diferentemente de outros políticos que enfrentam oposição no cargo por corrupção ou mau desempenho, a crise de Boris Jonhson  essencialmente uma crise de imagem, resultado da combinação explosiva de negar fatos que viriam a se confirmar depois, dar explicações frágeis ou consideradas ultrajantes para a população e mentir na tribuna do Parlamento. 

E nada disso foi apagado com a votação desta noite, acompanhada ao vivo pelas emissoras de TV, que destacaram a “rebelião”. 

Ele cometeu um erro fundamental em gestão de crises: deixou o problema crescer aos poucos, em vez de admitir toda a história logo no início, se desculpar, tomar atitudes concretas e tentar se recuperar do impacto negativo sem o risco de novos fatos negativos emergirem.

Em sua defesa pode-se dizer que tomar atitudes concretas como demitir os envolvidos teria pouco efeito, a não ser que ele mesmo renunciasse, o que muitos achavam que ele deveria ter feito desde o início. 

Pelas regras do parlamentarismo britânico, a sessão de hoje aconteceu porque pelo menos 54 dos 359 parlamentares do Partido Conservador entregaram cartas solicitando a votação depois de o primeiro-ministro ser multado por desrespeito ao lockdown e do relatório devastador que confirmou a extensão do Partygate, assinado pela ex-funcionária pública Sue Gray. 

Seja por convicção de que seu comportamento foi moralmente inaceitável ou porque ele se tornou tóxico para seus companheiros e sua permanência pode colocar em risco a liderança do país pelo Partido Conservador, o apoio foi se deteriorando à medida em que a má gestão de comunicação fazia a popularidade despencar.

Na última pesquisa do Instituto YouGov, oito em cada 10 britânicos acham que Johnson mentiu sobre as festas, e 60% deles acham que os parlamentares deveriam votar contra sua permanência no cargo. Entre os eleitores do partido Conservador a taxa cai, mas ainda assim para 50%. 

Uma das grandes críticas à gestão da crise pelo primeiro-ministro foi a de ele não ter renunciado, tanto para se preservar de uma humilhação quanto para evitar que os eleitores do partido deixem de votar em outros candidatos nas próximas eleições parlamentares. 

Um exemplo do tamanho do desgaste foi a vaia que ele recebeu na entrada da Catedral de St.Paul na última sexta-feira pela multidão que acompanhava a chegada de convidados para a missa de ação de graças pelo Jubileu de Platina da rainha Elizabeth. Nem precisou de comentários de jornalistas: o som foi ouvido na transmissão ao vivo pelas TVs.

Depois, Johnson foi fotografado cabisbaixo no banco da igreja.

A imagem foi destacada nos jornais e circulou nas redes sociais como sinal de sua crise, ainda que apoiadores como a Secretária Nacional de Mídia, Nadine Dorries, tenha tentado inutilmente vender a ideia de que havia mais aplausos do que vaias. 

A crise da covid, mesmo com a covid sob controle 

A votação de hoje foi mais um capítulo de mais de seis meses do escândalo apelidado de Partygate, em alusão ao caso Watergate, que custou a cabeça do presidente americano Richard Nixon em 1972 .

Só que em vez de segredos sobre espionagem, o Partygate revelou que a melhor balada de Londres durante o lockdown da covid-19 era em Downing Street 10, sede do governo e residência oficial, onde aconteceram festas seguidas regadas a muito álcool.

Além de Johnson, outras 82 foram multadas pela Scotland Yard, incluindo Carrie, a mulher dele. Ao todo foram emitidas 126 multas.

Há várias ironias na saga do premiê, que depois de uma carreira no. jornalismo entrou para a política e ganhou projeção mundial como prefeito de Londres, cidade que comandou durante os Jogos Olímpicos de 2012.

Hábil em marketing, ele criou uma persona exótica, com cabelos sempre despenteados, e era tão popular que as bicicletas de aluguel lançadas em Londres ganharam o nome de Boris Bikes. 

Sua forma de falar é entusiasmada, quase um líder de torcida.

Em todas as entrevistas em que é questionado sobre os acontecimentos do Partygate, o primeiro-ministro costuma responder com frases como “o que realmente importa é o que estamos fazendo e ainda vamos fazer pelo país”, uma forma de se desviar da pergunta. 

Na semana passada, usou o recurso mais manjado de políticos que querem ganhar simpatia do povo: oferecer dinheiro.  O primeiro-ministro anunciou um generoso pacote para amenizar a crise do custo de vida que assusta o país.

A ironia é que a crise de imagem de Boris Johnson aconteceu em um momento em que ele deveria viver uma alta popularidade, depois de ter conduzido um dos mais rápidos programas de vacinação contra a covid-19 do mundo.

Mas decisões erradas e uma forma mais errada ainda de reagir publicamente aos fatos tiveram o efeito contrário. 

Antes de os rumores sobre festas, que circulavam de forma discreta, começarem a virar notícia com base em fontes confiáveis da mídia e evidências como fotos ou vídeos, a  imagem de Boris Johnson já vinha comprometida por notícias sobre doações mal explicadas para obras em sua residência oficial. 

Mas a questão das festas pegou em dois ponto sensíveis para a população: a confiança no líder da nação e o sofrimento de quem perdeu entes queridos, empregos ou deixou de encontrar parentes e amigos durante meses por causa do lockdown severo. 

Quando as notícias começaram a surgir, a equipe de comunicação de Boris Jonhson e ele próprio as justificavam  como encontros de trabalho, sem que o primeiro-ministro tivesse participado de nada que não fosse profissional.  

Até que veio uma novidade expressa em uma sigla de quatro letras: BOYB, de Bring Your Own Booze (traga sua própria bebida). Foi a cereja do bolo do “Partygate” de Boris Johnson, que viria a ser confirmada no relatório de 60 páginas de Sue Gray. 

A sigla comprometedora estava em um e-mail revelado pela emissora ITV. Ele foi enviado a mais de 100 destinatários por Martin Reynolds, secretário pessoal de Johnson. 

Era um convite para um encontro aproveitando o “lovely weather” que fazia em 20 de maio de 2020. Justamente no auge da crise, quando o Reino Unido chorava por mortos, internados e pelos prejuízos de uma Covid descontrolada. 

Em uma sessão do Parlamento no dia 12 de janeiro, o primeiro-ministro pediu desculpas desajeitadas à nação, mas a conversa mudou para fortes críticas às respostas dadas aos opositores na tentativa de ganhar tempo com o pedido de aguardar o resultado da comissão que investiga a realização das festas. 

Um dos pontos mais criticados da fala de Johnson foi a afirmação de que o encontro teria acontecido para reconhecer o trabalho dos funcionários.

Não apenas isso não está indicado no email, como é um direito que nenhuma outra empresa ou instituição do país teve no auge da crise da pandemia, quando muitos arriscaram a vida em hospitais e no transporte, e não puderam se reunir para confraternizar. 

Outro ponto questionado no Parlamento foi o fato de Johnson ter destituído ou aceitado a demissão de assessores que haviam se comportado mal, e que por isso deveria fazer o mesmo.

Depois que ele recebeu a multa, a pressão por renúncia aumentou. Foi a primeira vez que um primeiro-ministro foi multado no cargo. Não é uma obrigação, mas é habitual que um político de alta envergadura renuncie quando uma falha dessa natureza é comprovada. 

Equipe de comunicação ajudou a piorar crise  

Um dos aspectos mais atípicos da crise de comunicação de Boris Johnson é que vários de seus assessores de imagem tiveram papel vital para criar fatos negativos ou lidar mal com eles. E a mulher do premiê é uma profissional de comunicação, que já dirigiu o setor de imprensa do Partido Conservador. 

O caso mais retumbante foi o da então chefe da comunicação, Allegra Stratton, que em uma simulação de entrevista em dezembro de 2020 fez troça com a resposta que daria caso as supostas festas chegassem ao conhecimento da mídia. 

No dia seguinte, um ato de outro assessor graduado causou constrangimento ainda maior. Na véspera dos funerais do príncipe Philip, em que a foto da rainha solitária por respeito ao protocolo vigente de isolamento social comoveu o mundo, a turma de Downing Street 10, a sede do governo, se reuniu para não apenas uma, mas duas festas. 

Uma delas foi o “bota-fora” do então diretor de comunicação de Johnson, James Slack, que tinha a função de proteger a imagem do governo e acabou por criar um grande constrangimento em sua despedida. Depois das revelações do jornal, ele também se desculpou pela “raiva e mágoa” que provocou.

Em fevereiro, Boris Johnson nomeou um novo assessor, o jornalista Guto Harris. Mantendo o padrão de seus antecessores, ele começou no posto fazendo a última coisa que um profissional em seu cargo deve fazer: revelar conversas internas sensíveis em uma entrevista a um pequeno site de notícias.  

De forma relaxada, como se estivesse com amigos em um pub, ele contou ao site Golwg360, do País de Gales, que o primeiro-ministro cantou a música “I Will Survive” quando foi perguntado se estava firme no cargo.

E ainda piorou a situação afirmando que o chefe não era “a pessoa negativa que muitos acham que seja” e “que não é tão palhaço”. 

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Desculpas não foram suficientes para estancar crise 

O posicionamento de comunicação do primeiro-ministro foi mudando ao longo da crise, um dos maiores erros que uma figura pública pode cometer, já que as mudanças eram para confirmar ou justificar algo que ele havia negado antes. 

No início o primeiro-ministro negou que houvesse festa. Depois, que sabia de sua existência. Depois, que tivesse participado de alguma, ou de várias. Em alguns casos, disse que não tinha entendido que aquilo era uma festa. 

Quando fotos, emails e imagens vazaram ou foram tornadas públicas no relatório de Sue Gray, Johnson adotou a tática de pedir desculpas. Até para a rainha Elizabeth, por causa de uma festa ocorrida na véspera do velório do príncipe Philip. 

Mas desculpas adiantam? Os fatos que vieram sem seguida comprovaram que não. 

Ao Parlamento, à rainha ou ao povo, as desculpas de Boris Johnson foram sempre confrontadas com o fato de que as outras pessoas não tiveram o direito que ele se deu (e aos seus funcionários diretos) de celebrar ou pelo menos relaxar durante o lockdown da covid-19. 

A cada má notícia e a cada ponto perdido na aprovação, aumentou a pressão para a sua renúncia, que como não aconteceu provocou o voto de desconfiança desta segunda-feira. 

E as redes sociais tiveram papel importante nesse processo. Inicialmente o clima entre os parlamentares do Partido Conservador estavam mais para o deixa-disso, com poucos parlamentares aliados se manifestando publicamente.

Com as novas revelações, a pressão de eleitores aos seus parlamentares pelas redes sociais serviu para mostrar que eles também tinham a perder.  E muitos correram para avisar aos seus eleitores que tinham pulado fora do barco. 

A dúvida agora é o tamanho do desgaste para o próprio partido e para os seus representantes. O Partido Conservador está no poder desde 2010, por meio de um acordo de coalizão com os liberais democratas, encerrando 13 anos de governo trabalhista.

Mas a crise da covid abatendo políticos pode não ter ainda acabado. O atual líder trabalhista, Keir Starmer, também é alvo de uma investigação policial e pode ser multado por ter participado de um jantar após um encontro político, quando as regras da pandemia não permitiam socializar.

Ele anunciou que se for multado vai renunciar à liderança do partido, provocando uma eleição interna que vai escolher aquele que poderá derrotar o desgastado Partido Conservador nas urnas e devolver o país aos Trabalhistas. 

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