A repressão da China ganhou ramificações fora do país e adotou o Twitter para atingir jornalistas de ascendência asiática que moram no Ocidente por meio de uma nova rede que ganhou o nome de Spamouflage, revelou uma análise feita pelo Instituto Australiano de Política Estratégica (ASPI, na sigla em inglês).
Os pesquisadores Danielle Cave e Albert Zhang, autores do relatório, identificaram nas últimas semanas ataques online coordenados a jornalistas, em especial mulheres de origem étnica chinesa que trabalham para grandes veículos de mídia.
A rede social admitiu os ataques ao Axios e informou ter suspendido mais de 400 contas. O governo da China negou qualquer envolvimento na Spamouflage, mas o ASPI enumera diversas ligações com o país.
Repressão da China tenta silenciar jornalistas que estão fora do país
A análise do ASPI, divulgada primeiro pelo site americano Axios, identificou um esforço da China para combater o trabalho e opiniões de jornalistas mulheres com notoriedade pública que vivem fora do país.
O foco tem sido em profissionais que atuam nos principais meios de comunicação ocidentais como as revistas New Yorker e The Economist, os jornais New York Times e The Guardian e o site de notícias financeiras Quartz.
Alguns exemplos são os ataques que as contas do Twitter de Jiayang Fan (New Yorker), Alice Su (The Economist) e Muyi Xiao (New York Times) receberam no último mês. Muitas das mensagens diziam que elas eram “traidoras” e “manchavam” a imagem da China.
Segundo os pesquisadores, além das jornalistas, analistas e ativistas de direitos humanos da China também estão sendo objeto de “uma campanha online contínua, coordenada e em grande escala” que dissemina ódio e estimula a perseguição às profissionais.
Recentemente, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) denunciou que entidades ligadas ao governo chinês passaram a perseguir publicamente profissionais de mídia estrangeiros, resultando em grandes campanhas de assédio online e pessoal.
Como parte dessa nova tática, veículos estatais e cidadãos populares na rede social Weibo postam os nomes e as fotos de jornalistas estrangeiros que “divulgam e atacam a China”, chamando sua cobertura de “tendenciosa”, “desonesta” e fazendo ameaças.
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Com base nos ataques mais recentes, o ASPI avalia que as contas falsas do Twitter por trás dessa operação contra jornalistas de descendência chinesa estão ligadas à rede “Spamouflage”, que a própria rede social atribuiu ao governo chinês em 2019.
Ao Axios, um porta-voz do Twitter confirmou que a atividade identificada no relatório do ASPI fazia parte da rede “Spamouflage”.
A plataforma informou confirmou que uma investigação sobre os ataques coordenados a mulheres jornalistas asiáticas está em andamento.
Como opera a Spamouflage
Os pesquisadores do ASPI detalharam como funcionam os ataques coordenados da rede “Spamouflage”, braço cibernético da repressão na China.
Centenas de contas foram criadas com o único propósito de atingir as jornalistas. Algumas delas têm como alvo apenas uma profissional, enquanto outros perfis visam várias mulheres ao mesmo tempo.
Alguns desses perfis no Twitter também espalham propaganda alinhada com o Partido Comunista Chinês (PCC) em outras publicações não direcionadas às mulheres.
Os ataques mais recentes, segundo o instituto, incluíram abuso psicológico, assédio, trollagem em massa e ameaças às profissionais da mídia — algumas chinesas e outras de ascendência asiática, mas nascidas no exterior.
“Algumas mulheres foram bombardeadas com tweets sobre vários assuntos, frequentemente de contas de spam acusando o alvo de notícias falsas ou cobertura anti-China, embora os tweets geralmente não sejam personalizados.”
Outras partes dos ataques da “Spamouflage” são muito mais sofisticadas e personalizadas.
O ASPI explica que muitos conteúdos são adaptados às circunstâncias individuais, abrangendo a vida profissional e pessoal das vítimas. “Isso exige uma ampla vigilância de indivíduos-alvo para adaptar esses tweets e suas mensagens”, diz o relatório.
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No Twitter, as vítimas começam a receber centenas de mensagens de uma vez acusando-as de serem traidoras e mentirosas, trair sua “pátria” e caluniar seu país de origem — mesmo que elas nunca tenham tido cidadania chinesa.
“Essas contas tentam atacar sua aparência física, questionar sua credibilidade e a qualidade de seu trabalho, muitas vezes em resposta a conteúdos que escreveram ou produziram.
Essas campanhas são caracterizadas por altos níveis de abuso pessoal, incluindo ataques sexistas, misóginos e racistas que incluem mensagens como ‘traidores não morrem bem’ e ‘traidores muitas vezes acabam mal’.”
Uma delas foi a hashtag #TraitorJiayangFan – direcionada à redatora da New Yorker Jiayang Fan.
Fan já escreveu sobre ser submetida à propaganda chinesa e trollagem nacionalista.
A pesquisa do ASPI mostrou que os ataques mais recentes com a #TraitorJiayangFan foram iniciados e ampliados por pelo menos 367 contas falsas do Twitter desde 19 de abril.
Alguns perfis no Twitter compartilharam vídeos de contas suspeitas do YouTube, incluindo um suposto usuário Lino Nissan, por exemplo, que foi criado em 25 de maio e só postou vídeos em mandarim atacando Fan.
Os pesquisadores ainda descobriram que a maioria das contas do Twitter desta rede de ódio se apropriou de imagens de mulheres reais de outros sites para usar como imagens de perfil.
Imagens geradas por inteligência artificial também foram usadas como fotos de perfil. Essas imagens de perfil são principalmente de mulheres, mas em alguns casos de crianças.
Análise liga ‘repressão digital’ a perfis online da China
O relatório do ASPI rastreou as contas do Twitter que atacam jornalistas de ascendência asiática e até perfis da China.
O instituto encontrou vários padrões semelhantes nos perfis usados para disseminar o ódio nas redes sociais das mulheres, incluindo a publicação de conteúdo negando abusos de direitos humanos em Xinjiang, o compartilhamenti de hashtags que o ASPI avaliou como sendo da “Spamouflage” e usando imagens de perfil semelhantes às contas anteriores vinculadas à mesma rede.
Além disso, a maior parte dos ataques às profissionais da mídia Ocidental foi feita durante o horário comercial de Pequim.
E as contas estavam muito menos ativas entre os dias de 30 de abril e 4 de maio — período do feriado estendido do Dia do Trabalhador na China.
A repórter do New York Times Muyi Xiao e a jornalista de vídeo de Washington Xinyan Yu são atualmente os alvos de alguns ataques mais maliciosos, segundo o instituto.
Muitas das contas do Twitter que os direcionam estão vinculadas aos mesmos operadores que visam Fan e outras operações de informações vinculadas ao Partido Comunista Chinês.
Na semana passada, pelo menos 112 contas diferentes postaram mais de 500 tweets direcionados a Xiao em 24 horas. Destas contas, 54 foram criadas apenas em 15 de abril.
Essa atividade está aumentando, aponta o relatório. Contas inautênticas pró-China no Twitter estão começando a assediar outros jornalistas notórios e ativistas de direitos humanos, incluindo Alice Su, Mei Fong, Lingling Wei e Jane Li.
Essas atividades secretas parecem coordenadas com uma campanha mais ampla do governo chinês para silenciar as mulheres de ascendência asiática que criticaram suas políticas, ou simplesmente relataram alguns problemas que estão acontecendo na China.
Esta não é a primeira vez que o PCC tem como alvo as mulheres online. Na China, as mulheres foram abusadas, censuradas , desplataformadas e às vezes até presas por seu trabalho sobre os direitos das mulheres, por exemplo.
Jornalistas que trabalham na China são alvos das autoridades há muito tempo.
É o que aconteceu, por exemplo, com a jornalista australiana Cheng Lei, presa há 21 meses em território chinês. Em entrevista recente, o namorado dela, Nick Coyle, contou que ela está com saúde debilitada devido a uma dieta de arroz branco cru e não recebe visitas consulares há vários meses.
A jornalista de 46 anos é acusada de “fornecer ilegalmente registros estaduais no exterior”. Ela era âncora da emissora estatal China Global Television Network (CGTN) e sua detenção gerou comoção internacional.
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Governos e plataformas precisam frear repressão da China, diz instituto
Para o instituto australiano, cabe aos governos de países e às plataformas de mídia social frear a repressão da China no ambiente online.
O ASPI aponta que o Estado chinês está usando canais de propaganda globais mais estratégicos, mobilizando a atividade nacionalista online, empregando e ampliando influenciadores ocidentais e ampliando as narrativas russas e a desinformação sobre a Ucrânia — ou seja, o governo chinês está ampliando seu escopo e alvos nas redes sociais.
Por isso, é necessário que as plataformas de mídia social mudem urgentemente sua abordagem com ataques coordenados e adote uma postura mais preventiva e proativa:
“Plataformas e governos precisam trabalhar de forma mais colaborativa para construir a infraestrutura, capacidade e medidas de dissuasão necessárias para responder à interferência estrangeira cibernética e à repressão digital transnacional.
Ambos também precisam trabalhar mais estreitamente com grupos especializados da sociedade civil no desenvolvimento de políticas e identificar redes, atores e alvos.”
O ASPI sugere que um bom primeiro passo seria que os governos denunciassem publicamente essas campanhas maliciosas de assédio e desinformação contra seus cidadãos.
“Isso sinalizaria para o público, comunidades da diáspora, plataformas de mídia social, atores mal-intencionados e, é claro, indivíduos e organizações sob ameaça, que haverá um rápido aumento no foco e na ação das políticas.”
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