Londres – O retuíte de uma gracinha sexista por um repórter do jornal americano Washington Post virou uma crise de proporções internacionais, com um desfecho improvável: a jornalista que reclamou do colega acabou demitida e história virou notícia em vários países.

No dia 3 de junho, o experiente repórter político David Wiegel compartilhou um tuíte que dizia “Toda garota é bi. Você só precisa descobrir se é polar ou sexual” – e foi imediatamente criticado pela colega Felicia Somnez, sendo em seguida suspenso.

Só que em vez de reclamar à direção ou por canais internos, ela optou pelo Twitter, desencadeando uma intensa troca de farpas que acabou levando à sua própria demissão por “insubordinação, difamação de colegas online e violação dos padrões do Post sobre coleguismo e inclusão no local de trabalho”, segundo a carta de rescisão publicada pela imprensa americana. 

Experiência não ajudou jornalista americano a evitar risco no Twitter

O caso exemplifica como a rede social preferida de jornalistas, políticos e figuras influentes é um campo minado para quem ainda não entendeu que certas gracinhas podem virar desastre, dependendo de quem publica.

Também é um exemplo das dificuldades enfrentadas por empresas, jornalísticas ou não, para definir limites entre o que pode e o que não pode ser postado em contas pessoais de seus funcionários nas redes, em alguns casos contradizendo as políticas de diversidade e inclusão. 

Wiegel, profissional experiente que cobre política na capital americana, tem 600 mil seguidores e é ativo na plataforma, tuitando e retuitando furiosamente. Quem faz isso nem sempre tem tempo de avaliar as consequências do que compartilha. 

Em 2017, o jornalista publicou uma foto de um comício do então candidato Donald Trump mostrando vários assentos vazios. Mas a imagem tinha sido feita antes de o público chegar. Ele se desculpou, porém não aprendeu a lição.

Desta vez a ofensa foi mais abrangente. O post original tinha sido publicado por Cam Harless, um dos apresentadores do podcast “The Mad Ones”. Em uma frase, Harless conseguiu ser ofensivo a mulheres, a bissexuais e a pessoas com transtorno de bipolaridade.

O jornalista pediu desculpas por ter retuitado, mas a confusão já estava armada em uma das principais redações do jornalismo americano. 

Jornalista que reclamou tinha processado o jornal americano

Felicia Sonmez, que ano passado processou o Washington Post por proibi-la de cobrir casos de abuso sexual sob o argumento de que, por ter sido vítima de um, não teria imparcialidade para relatar histórias semelhantes, foi a primeira a reclamar. 

Com ironia, ela disse no Twitter: “É fantástico trabalhar em um meio de comunicação onde retuítes como esse são permitidos”.

A  jornalista também questionou o colega no canal interno, afirmando que o retuíte enviou “uma mensagem confusa sobre os valores do Post”.

No caso do jornal americano,  há um agravante para a situação: ano passado o jornal americano nomeou Sally Buzbee, primeira jornalista mulher a chefiar sua redação na história, prometendo uma atitude diferente sobre diversidade, inclusão e representação. 

Para tentar apagar o incêndio aceso pela iniciativa de Sonmez de tornar o caso público, Buzbee soltou no dia seguinte um memorando exigindo que os repórteres “tratem uns aos outros com respeito e gentileza”. 

Mas Felicia Sonmez, que teve seu processo contra o jornal arquivado há um mês, não se deu por satisfeita e continuou atirando na direção e nos colegas. 

Alguns reagiram negativamente às críticas dela. Um deles foi outro jornalista da casa, Jose Del Real, que tentou defender o autor do retuíte adivinhem onde? NoTwitter, claro.

Ele pôs mais lenha na fogueira ao dizer que a tática de Sonmez “não resolve nada”, e arrematou com um caridoso (para com o colega homem) “Felicia, todos nós erramos de vez em quando”.

Depois ele bloqueou a jornalista, ao que ela rebateu ironizando a afirmação de que o jornal americano é um ambiente colaborativo de trabalho.

Jornalista foi suspenso e está calado no Twitter 

David Wiegel foi suspenso sem receber pagamento por um mês. Ao final do período o Washington Post terá que decidir o que fazer com ele.

A julgar pela demissão de Sonmez, pode ser que o jornalista não sofra nenhuma sanção adicional, já que o maior crime do caso não foi o tuíte, e sim a decisão de tornar as críticas públicas.

Cuidadoso, ele se recolheu e não participou de nenhuma conversa nas redes. Sua conta no Twitter, que no dia 3 de junho contabilizava mais de 40 posts, está praticamente inativa, com apenas duas novas publicações no dia 6 de junho e nada mais. 

Mas ele fica em uma posição desconfortável, já que a história dividiu a equipe entre torcedores da demitida ou do autor da postagem. 

Alguns são colegas de profissão, como Abdallah Fayyad, articulista de opinião do americano Boston Globe. Ele elogiou a jornalista Sonmez por ter feito aquilo que os empregadores esperam que seus funcionários façam: cobrar responsabilidades de qualquer instituição poderosa, sendo ela o governo ou seu próprio jornal. 

A mesma leitura foi feita por gente que não trabalha em redação mas passou a acompanhar a novela no Twitter. O engenheiro de software Marc Hedlund seguiu a mesma linha, questionando se discutir situações como essas não seria a função de um repórter. 

https://twitter.com/marcprecipice/status/1534728939247063046?s=20&t=b_MZaH7WPMLDcH29npMxHA

Mas nem todos os colegas de Felicia Sonmez apoiaram a decisão e levar a história tão longe e de forma tão pública.

Coincidência ou não, as postagem adotam uma narrativa bem parecida, admitindo que o jornal americano não é perfeito e declarando orgulho de trabalhar nele, e isso foi também alvo de comentários, sugerindo uma ação orquestrada para defender a direção. 

O caso continua repercutindo, com matérias na imprensa, comentários nas redes sociais e brigas internas.

 

Enquanto isso, o autor da postagem original está fazendo a festa, alimentando a polêmica que lhe deu mais notoriedade. Só ele ganhou nessa confusão, compartilhando opiniões e reportagens sobre a polêmica. 

https://twitter.com/TheSpectator/status/1535773876927442945?s=20&t=qlW-zIbFn2O2b_7CDq5GSg

Quem perdeu são as pessoas envolvidas e o próprio jornal. Para se prevenir desses riscos, muitas empresas de mídia estabelecem regras para a atividade de seus jornalistas nas redes.

Nem todos veem as restrições com bons olhos. Em 2020, a BBC foi criticada pelo pacote de regras baixado para os jornalistas, que recomendava até não tuitar sob efeito de álcool.

Leia mais 

As regras da BBC para uso de redes sociais por jornalistas

A corporação britânica vive pisando em ovos, porque tuítes de seus jornalistas volta e meia viram notícia, apontados como defesa de a ou b. Na maioria dos casos, são apenas reclamações de políticos incomodados com cobertura negativa.

No caso do Washington Post, a situação é outra. O tuíte original era ofensivo, embora não relacionado diretamente ao trabalho de cobertura da política americana pelo jornalista. 

Mesmo com desculpas, remoção da postagem e medidas disciplinares, essas histórias têm vida longa nas plataformas digitais.

Ao retuitar a brincadeira ofensiva em uma conta seguida por 600 mil usuários do Twitter e associada ao seu trabalho no jornal americano, o jornalista David Wiegel arrastou a empresa em que trabalha para uma crise relacionada a um dos temas mais sensíveis para a mídia: a necessidade de se tornar mais diversa, inclusiva e responsável na representação de grupos marginalizados ou minoritários. 

Leia também 

Especial | O que é diversidade na mídia e por que ela é vital no combate às desigualdades sociais