O discurso estigmatizante que coloca a imprensa como inimiga e a impunidade que reina sobre os ataques contra jornalistas sรฃo os principais fatores que possibilitaram o clima de violรชncia que a imprensa do Equador vem vivendo nas รบltimas duas semanas, em meio a uma greve nacional no paรญs.

Essa รฉ a opiniรฃo de vรกrias organizaรงรตes de defesa da liberdade de expressรฃo, que condenaram a onda de ataques ocorridos em vรกrias cidades do paรญs durante as manifestaรงรตes convocadas desde 13 de junho por lideranรงas indรญgenas e outras organizaรงรตes sindicais equatorianas.

Os manifestantes exigem que o governo do presidente Guillermo Lasso reduza os preรงos dos combustรญveis, cancele as dรญvidas dos povos indรญgenas, estabeleรงa preรงos justos para os produtos agrรญcolas e aumente o orรงamento para saรบde e educaรงรฃo, entre outras demandas.

Jornalistas sofrem ataques generalizados no Equador

โ€œHรก um clima de violรชncia muito grave contra a imprensa. Houve episรณdios violentos, como ataques com pedras, paus, objetos ou lรญquidos ferventes lanรงados contra jornalistas, e nรฃo lhes permitem fazer sua coberturaโ€, disse Cรฉsar Ricaurte, diretor da organizaรงรฃo Fundamedios.

โ€œTem havido violรชncia generalizada no contexto da greve. Tem sido algo permanente, sistemรกtico e generalizadoโ€, informou.

Atรฉ 28 de junho, a Fundamedios havia registrado um total de 142 ataques a 159 pessoas, entre jornalistas (86), cinegrafistas (27), fotojornalistas (9), meios de comunicaรงรฃo (8), comunicadores (5), assistentes (4), pรกginas web (4) e defensores de direitos humanos (4). Oito dos jornalistas atacados foram atacados mais de uma vez.

A organizaรงรฃo revelou que em 117 casos de violรชncia, os agressores foram manifestantes; em 14 casos, agentes de forรงas de seguranรงa; em 13, sujeitos desconhecidos; em 6, funcionรกrios pรบblicos; em 4, agressores nรฃo estatais; em 4, figuras polรญticas; e em um caso, uma lideranรงa indรญgena.

Discursos de manifestantes no Equador acusam jornalistas de corrupรงรฃo

Os ataques mais frequentes foram agressรตes fรญsicas, com um total de 65.

Houve 49 ameaรงas, 17 casos de discurso estigmatizante, 10 casos de impedimento de acesso ร  informaรงรฃo, 6 casos de restriรงรตes no espaรงo digital, 5 casos de roubo de equipamentos, 4 prisรตes, 2 casos de destruiรงรฃo de equipamentos e um caso de processo legal contrรกrio ร s normas.

Os ataques registrados foram realizados nas provรญncias de Pichincha, Guayas, Cotopaxi, Bolรญvar, Pastaza, Imbabura, Morona Santiago, Napo, Chimborazo e Zamora Chinchipe.

“Os ataques vรชm principalmente de manifestantes que acusam os meios de comunicaรงรฃo e os jornalistas de serem atores polรญticos tendenciosos dentro da greve nacional, convocada pelo movimento indรญgena”, disse a rede regional de organizaรงรตes de defesa da liberdade de imprensa e proteรงรฃo de jornalistas Voces del Sur em um comunicado emitido em 23 de junho.

“[…] Tudo isso, em meio a um discurso constante de rejeiรงรฃo ร  presenรงa de jornalistas e uma estigmatizaรงรฃo do trabalho dos meios de comunicaรงรฃo.”

โ€œImprensa corruptaโ€ รฉ um dos slogans que os manifestantes mais repetiram em seus ataques verbais aos meios de comunicaรงรฃo.

Essa frase foi popularizada pelo ex-presidente Rafael Correa como parte da campanha de descrรฉdito contra jornalistas e meios de comunicaรงรฃo que realizou durante seus 10 anos no poder por meio de espaรงos oficiais de rรกdio e televisรฃo.

Este discurso estigmatizante que faz referรชncia a uma imprensa a serviรงo do governo ou de outros setores do poder tem permeado movimentos sociais, como o movimento indรญgena, que lidera a atual greve nacional.

โ€œSe vocรช ouvir os discursos, o fator imprensa estรก sempre presente como inimigo. Isso รฉ algo que tambรฉm รฉ tratado por lรญderes regionais e comunitรกrios. Se comeรงarmos a rever os discursos das lideranรงas indรญgenas, veremos que hรก um discurso generalizado contra a imprensaโ€, disse Ricaurte ร  LJR.

โ€œO que isso faz รฉ justificar: ‘estou legitimado porque no momento em que ataco um jornalista, estou atacando alguรฉm que รฉ supostamente meu inimigo.’โ€

Imprensa รฉ vista como inimiga de manifestantes

Em vรกrias ocasiรตes, lรญderes do movimento indรญgena impediram a cobertura de suas mobilizaรงรตes sob a ideia de que a mรญdia tradicional no Equador nรฃo diz a verdade e nรฃo reflete adequadamente suas vozes.

De acordo com o diretor da Fundamedios, hรก uma noรงรฃo de que se a imprensa nรฃo aderir ร  verdade das lideranรงas indรญgenas, eles sรฃo inimigos.

โ€œHรก meios que tรชm uma linha muito crรญtica ao movimento indรญgena, a essas mobilizaรงรตes. Mas mesmo estes meios de comunicaรงรฃo tรชm o direito de fazer coberturas e fazer seu trabalho com seguranรงa, sem serem submetidos a agressรตes e condiรงรตes em que nรฃo podem fazer seu trabalhoโ€, disse ele.

โ€œIsso faz parte do jogo democrรกtico, a existรชncia de diferentes linhas editoriais e รฉ isso que alimenta a pluralidade do ambiente midiรกticoโ€, ressalta.

Por sua vez, a rede Voces del Sur lembrou aos lรญderes da greve nacional que os jornalistas nรฃo sรฃo atores polรญticos e que seu trabalho รฉ coletar todas as vozes para que os cidadรฃos conheรงam a diversidade dos acontecimentos.

โ€œCondenamos estas agressรตes e instamos o Estado e as organizaรงรตes sociais que promovem a mobilizaรงรฃo a dar a devida proteรงรฃo e garantias para o desenvolvimento do trabalho jornalรญstico e assim reconhecer a importรขncia do trabalho da imprensa e dos jornalistas nestes contextosโ€, disse a organizaรงรฃo em seu comunicado.

Outros episรณdios de violรชncia contra jornalistas foram registrados no Equador

A impunidade em casos de violรชncia contra a imprensa em anos anteriores รฉ outro fator que tem incentivado os ataques durante a atual greve nacional.

Em outubro de 2019, o Equador foi palco de graves ataques contra meios de comunicaรงรฃo em meio a outra sรฉrie de manifestaรงรตes.

Entre os casos mais graves da รฉpoca estavam a tentativa de incรชndio do canal Teleamazonas, a retenรงรฃo de um grupo de jornalistas por manifestantes e o ataque ao jornalista Freddy Paredes, que recebeu uma pedrada na cabeรงa que o levou ao hospital.

O Ministรฉrio Pรบblico equatoriano apenas investigou o caso Paredes e condenou o agressor – funcionรกrio temporรกrio do Conselho Nacional Eleitoral do Equador – a quatro meses e meio de prisรฃo e a pagar uma indenizaรงรฃo de 2.000 dรณlares, que ele nรฃo pagou, segundo o jornal El Paรญs.

โ€œNรฃo houve nenhum outro caso que tenha sido processado ou investigado. Nรฃo hรก absolutamente nenhum exercรญcio de justiรงa, nem investigar, nem punir as agressรตes contra a imprensaโ€, disse Ricaurte.

Organizaรงรตes sociais e รณrgรฃos internacionais temem que a onda de ataques que comeรงou em 13 de junho possa levar a uma crise de direitos humanos para os cidadรฃos, principalmente em seu direito de serem devidamente informados.

A Anistia Internacional disse em comunicado publicado em 20 de junho que a criminalizaรงรฃo de jornalistas e defensores de direitos humanos no Equador, bem como as mรบltiplas denรบncias de assรฉdio e uso excessivo da forรงa, โ€œestรฃo causando uma crise de direitos humanos que lembra outubro de 2019โ€.

Por sua vez, a Comissรฃo Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e sua Relatoria Especial para a Liberdade de Expressรฃo (RELE) pediram ร s autoridades e lideranรงas sociais que evitem atacar ou estigmatizar a imprensa.

Tambรฉm lembraram a importรขncia de que os jornalistas faรงam uma boa cobertura das mobilizaรงรตes para o bem dos cidadรฃos.

โ€œ[…] A cobertura jornalรญstica dos protestos sociais, em condiรงรตes de seguranรงa e liberdade, รฉ transcendental para que os cidadรฃos tenham acesso a informaรงรตes e opiniรตes sobre as reivindicaรงรตes a partir de perspectivas tรฃo plurais e diversas quanto a sociedadeโ€, afirmaram as organizaรงรตes em comunicado publicado em 24 de junho.

“A falta de acesso ร  informaรงรฃo tem o potencial de afetar tanto as vozes institucionais quanto as da sociedade civil, dificulta a compreensรฃo social do meio ambiente e distancia as possibilidades de resoluรงรฃo de disputas.”

Por seguranรงa, jornalistas deixam a cobertura das manifestaรงรตes no Equador

A cobertura recebida pelos cidadรฃos do Equador tambรฉm foi afetada pela autocensura pela qual optaram alguns jornalistas, especialmente aqueles que reportam na linha de frente e os de meios televisivos, para garantir sua integridade fรญsica.

โ€œA cobertura televisiva estรก agora bastante distante, as equipes nรฃo estรฃo mais localizadas no local das marchas, mas em locais de onde podem fazer um zoom ou enviar um drone para tirar fotos de alguma passarela ou de um prรฉdio prรณximo”, disse Ricaurte ร  LJR.

“Mas nรฃo hรก mais cobertura da linha de frente das marchas. E, obviamente, รฉ uma medida de autoproteรงรฃo bastante razoรกvelโ€, completou. “Vรช-se que hรก uma tendรชncia ร  autocensura na cobertura das marchas.”

Embora os agressores ativos da imprensa tenham sido principalmente manifestantes e forรงas de seguranรงa, a inaรงรฃo do Estado diante dos ataques e da hostilidade ร  imprensa permitiu que a violรชncia contra os meios se espalhasse sem maiores obstรกculos, segundo as organizaรงรตes.

โ€œO Estado nรฃo articulou aรงรตes suficientes para garantir o trabalho da imprensa. Isso se soma a discursos perigosos de lideranรงas indรญgenas que, um dia pedem respeito ร  imprensa e no outro acusam os meios de semear รณdio e violรชncia”, expressou a rede Voces del Sur em seu comunicado.

A rede ainda destacou: “Isso leva ร  geraรงรฃo de um ambiente adverso para as liberdades de expressรฃo, imprensa e acesso ร  informaรงรฃoโ€.

Para a Fundamedios, nรฃo apenas o atual governo รฉ responsรกvel, mas tambรฉm os governos anteriores de Lenรญn Moreno e Rafael Correa, durante os quais nรฃo houve aรงรตes efetivas para proteger os trabalhadores dos meios de comunicaรงรฃo.

โ€œO Estado รฉ responsรกvel por omissรฃo, neste caso. Na dรฉcada de Rafael Correa, o governo foi o principal agressor contra a imprensa, mas nos dois governos subsequentes o que existiu รฉ praticamente uma completa inaรงรฃo”, disse Ricaurte.

“Nenhuma polรญtica pรบblica de proteรงรฃo e seguranรงa do jornalismo foi adotada. Tudo ficou em ofertas, em experiรชncias truncadas, como a criaรงรฃo do comitรช de proteรงรฃo aos jornalistasโ€.


*Cรฉsar Lรณpez Linares comeรงou sua carreira no jornal mexicano REFORMA como coeditor de entretenimento e mรญdia. Ele escreveu para publicaรงรตes como TODO Austin, Texas Music Magazine e The Austin Chronicle. Cรฉsar tem mestrado em jornalismo pela University of Texas em Austin e รฉ bacharel em comunicaรงรฃo pela Universidad Nacional Autรณnoma de Mรฉxico. Escreve sobre inovaรงรฃo em jornalismo para a Fundaรงรฃo Gabo na Colรดmbia e para o blog LatAm Journalism Review do Centro Knight.


Este artigo foi publicado originalmente na LatAm Journalism Review, um projeto do Knight Center Para o jornalismo nas Amรฉricas / Universidade do Texas. Todos os direitos reservados ร  publicaรงรฃo e ao autor.

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