Londres – O dia 1º de julho marca o 25º aniversário da entrega da ex-colônia britânica Hong Kong à China, mas o jornalismo independente da ilha nunca esteve tão ameaçado. O alerta é da organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), que no último quarto de século vem monitorando de perto a situação da mídia no território.

Hong Kong está celebrando a data com uma série de eventos oficiais, com a presença do presidente da China, Xi Jinping, na sua primeira viagem ao exterior em dois anos e meio por causa da política de “tolerância zero” contra a covid-19.

Mas nem as festividades conseguiram esconder a crescente repressão aos jornalistas e profissionais da mídia na região. Ao menos 10 correspondentes locais e internacionais, incluindo da imprensa estatal chinesa, tiveram os credenciamentos rejeitados por “razões de segurança”, segundo a Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hong Kong.

China respeitou jornalismo livre em Hong Kong por pouco tempo

De acordo com a Declaração Conjunta Sino-Britânica de 1997, Hong Kong será governada de forma autônoma até 2047 com base em uma “miniconstituição” chamada Lei Básica, sob o princípio “um país, dois sistemas”.

Dessa forma, a economia socialista chinesa não pode ser incorporada à ilha, que mantém o sistema capitalista praticado enquanto ainda estava sob domínio britânico por mais 25 anos.

Em seu primeiro pronunciamento durante a visita a Hong Kong, que começou na quinta-feira (3), o presidente chinês Xi Jinping disse que “Hong Kong renasceu das cinzas” nesses 25 anos. 

Na última viagem do líder ao território, em 2017, a cidade vivia um período de intensa turbulência, tomada por protestos violentos amplamente documentados pela imprensa local e internacional. 

Tanto protestos quando cobertura livre dos acontecimentos no território são coisas do passado. Sob a Lei de Segurança Nacional decretada em 2020, dezenas de defensores, políticos pró-democracia e jornalistas foram presos e condenados. 

Entre os compromissos do presidente chinês em Hong Kong está a posse do novo chefe de governo local, John Lee, um ex-policial e ex-ministro da área de segurança. 

Hong Kong é um importante centro financeiro global, e conserva laços econômicos e culturais com a Grã-Bretanha. 

Londres não esconde a insatisfação com os novos rumos. O primeiro-ministro Boris Johnson disse ontem que o Reino Unido “não vai desistir de Hong Kong”, mas na prática não há nada de concreto a ser feito para mudar a situação, a não ser pressões diplomáticas ou sanções que não devem incomodar tanto a poderosa China. 

O retrocesso da liberdade de imprensa 

Nas primeiras duas décadas após a transferência, a Repórteres Sem Fronteiras afirma que a liberdade de imprensa foi “geralmente respeitada” em Hong Kong, apesar de Pequim assumir o controle de alguns meios de comunicação de língua chinesa e estabelecer uma pressão indireta por meio de anunciantes.

Foi em 2014, durante o “Movimento dos Guarda-Chuvas” pró-democracia, que os jornalistas foram alvos pela primeira vez de violência por parte da polícia e apoiadores pró-Pequim na ilha.

Cinco anos mais tarde, durante as manifestações do projeto de lei “anti-extradição”, a violência se intensificou ainda mais e centenas de jornalistas foram vítimas de brutalidade policial.

Em junho de 2020, a situação agravou-se com a adoção da Lei de Segurança Nacional, que pune com prisão perpétua os crimes de “terrorismo”, “secessão”, “subversão” e “conluio com forças estrangeiras” — e da qual jornalistas são uns dos principais alvos.

O jornalismo e a liberdade de imprensa de Hong Kong, que já foram referência para o restante da Ásia, estão em colapso, diz a Repórteres Sem Fronteiras. 

A RSF destaca que, no ano passado, o governo que administra o território fechou dois veículos independentes, o Apple Daily e o Stand News. Em janeiro deste ano, o jornal online Citizen News foi o terceiro obrigado a encerrar as operações em seis meses.

Ao menos 20 jornalistas e defensores da liberdade de imprensa enfrentam processos legais na ex-colônia do Reino Unido. Treze deles, segundo a organização francesa, ainda estão detidos, incluindo o fundador do Apple Daily, Jimmy Lai. 

“O governo de Hong Kong se engajou em uma campanha sem precedentes contra o jornalismo independente em total desrespeito à Lei Básica do território que consagra o princípio da liberdade de imprensa”, diz o chefe da Ásia Oriental da RSF, Cédric Alviani.

Ele pede que as democracias mundiais aumentem “a pressão sobre o regime de Pequim para que ponha fim às suas políticas autoritárias e restaure a plena liberdade de imprensa em Hong Kong”.

‘O grande salto para trás’

Em um relatório intitulado “O grande salto para trás do jornalismo na China”, publicado em dezembro de 2021, a RSF revelou o sistema de censura e controle de informações estabelecido pelo regime chinês no continente e em Hong Kong, e como isso representa uma ameaça global à liberdade de imprensa e à democracia.

No documento, a organização destacou principalmente as ferramentas do regime de repressão contra jornalistas e a deterioração da liberdade de imprensa em Hong Kong, que já foi um modelo de liberdade de imprensa, mas agora tem um número crescente de jornalistas presos em nome da segurança nacional.

Assim como a RSF, outras entidades de defesa do jornalismo – como a Federação Internacional de Jornalistas e o Centro de Proteção a Jornalistas – têm sido incisivas nas denúncias de violações, mas o governo chinês não parece se importar com críticas internacionais.

“Se a China continuar sua corrida frenética para trás, os cidadãos chineses podem perder a esperança de um dia ver a liberdade de imprensa estabelecida em seu país, e o regime de Pequim pode ter sucesso em impor seu antimodelo internamente e no exterior”, disse o secretário-geral da RSF, Christophe Deloire.

Ele cobra que as democracias “ identifiquem todas as estratégias adequadas para dissuadir o regime de Pequim de prosseguir as suas políticas repressivas e apoiar todos os cidadãos chineses que amam o seu país e desejam defender o direito à informação ”.

Lei restringiu o jornalismo de Hong Kong há dois anos

Hong Kong, outrora um bastião da liberdade de imprensa, caiu do 80º lugar no ano passado para o 148º no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa da RSF 2022.

A República Popular da China, por sua vez, ocupa a 175ª posição entre 180 países e territórios avaliados.

Na análise da organização sobre Hong Kong, a Lei de Segurança Nacional é apontada como o principal revés para o jornalismo da ilha:

“A Lei Básica de Hong Kong consagra a ‘liberdade de expressão, de imprensa e de publicação’.

A Lei de Segurança Nacional, no entanto, serve de pretexto para amordaçar vozes independentes.

Devido à sua formulação ambígua, a lei parece se aplicar a qualquer jornalista que cubra Hong Kong, independentemente de sua localização.”

A entidade destaca que os jornalistas em Hong Kong estão separados em dois grupos: aqueles que trabalham para a mídia local de língua chinesa e aqueles que trabalham para a mídia de língua inglesa ou internacional.

“Os jornalistas que trabalham para a mídia independente ou pró-democracia são geralmente considerados altamente pelo público, enquanto aqueles que trabalham para jornais ou emissoras de TV pró-Pequim são vistos de forma mais negativa.”

Em relação à segurança dos profissionais da mídia, a RSF observa que Hong Kong costumava ser um lugar muito seguro para jornalistas até 2014, quando aqueles que cobriam o Movimento dos Guarda-Chuvas foram alvos da polícia e de facções pró-Pequim.

A partir de então, o cenário só se deteriorou. Com as prisões dos protestos de 2021, a China manteve o título de maior carcereiro de jornalistas do mundo pelo quinto ano consecutivo: eram 127 atrás das grades em 1º de dezembro.

O censo carcerário, também organizado pela RSF, apontou que, embora o número de jornalistas presos na China continental tenha caído ligeiramente no ano passado, as detenções em Hong Kong contribuíram para um aumento geral de 2%.