MediaTalks em UOL

Rússia multa jornalista crítico da guerra por entrevista antiga com artista gay feita no Brasil

Jornalista multa Rússia Putin guerra Yuri Dud Ucrânia

Jornalista russo Yury Dud (à direita) foi multado por entrevistar Fyodor Pavlov-Andreevich, russo que vive em São Paulo (Foto: Reprodução/YouTube)

Londres – Uma entrevista com um artista gay que vive no Brasil veiculada há mais de um ano valeu a Yury Dud, jornalista e YouTuber da Rússia com mais de 10 milhões de inscritos, uma multa de 120 mil rublos (cerca de R$ 11 mil) por “promover relações sexuais entre menores”.

Embora o país restrinja o que a lei considera “propaganda gay” para crianças desde 2013 e o parlamento esteja planejando ampliar o veto a conteúdos sobre “relações sexuais não tradicionais” destinados a pessoas de qualquer idade, a multa a Yury Dud pode não ser apenas pela entrevista antiga. 

Por seu grande sucesso no site e posições contra a guerra, ele foi classificado, em abril, como “agente estrangeiro” pelo governo de Vladimir Putin — termo para designar pessoas e empresas que recebem financiamento do exterior. E estava contestando judicialmente o rótulo. 

Jornalista da Rússia não comentou a multa 

Aos 35 anos, o jornalista alvo da multa é uma das grandes estrelas da mídia na Rússia. Ele nasceu na Alemanha e vive no país desde os quatro anos de idade.

Depois de uma carreira em veículos de comunicação russos, criou seu canal na internet em 2017, dedicado a entrevistas com celebridades. Mesmo antes da guerra, já eram comuns as críticas sobre assuntos sensíveis ao Kremlin. 

Em 2019, Yury Dud foi criticado abertamente pelo porta-voz do governo, Dmitry Peskov, por seu discurso ao receber o prêmio de Personalidade do Ano da revista GQ. O jornalista pediu aos colegas que quebrassem o silêncio sobre brutalidade policial, corrupção e manipulação eleitoral. 

Fyodor Pavlov-Andreevich, entrevistado por Dud em março de 2021, mora no Brasil e é um reconhecido artista performático e diretor de teatro. A entrevista foi gravada em São Paulo e no Rio de Janeiro, e acumula quase 4 milhões de visualizações.

Eles conversam principalmente sobre arte. Entre os locais visitados está o Parque Lage, no Rio. 

Павлов-Андреевич – из телевизора в акционизм (English subs)

Apesar de mostrar cenas de nudez nas obras de arte comentadas pelo entrevistado, o programa não parece ter incomodado o Kremlin devido à suposta propaganda gay até junho deste ano.

O site de notícias Then24 publicou um link para o arquivo do processo que gerou a multa ao jornalista, mostrando que a ação foi protocolada no dia 28 de junho e concluída no dia 7  de julho. 

Na data em que a multa foi anunciada, o Tribunal de Lefertovo de Moscou rejeitou apelação de Dud contra a inclusão na lista de agentes estrangeiros. Ele havia sido listado em 15 de abril pelo Ministério da Justiça depois de se chamar a invasão da Rússia à Ucrânia de “frenesi imperial”.

Pessoas ou organizações de mídia classificadas dessa forma têm que declarar qualquer investimento estrangeiro e seguir uma série de protocolos burocráticos. 

Em novembro de 2021, o jornalista tinha recebido outra multa, de 100 mil rublos, por “propaganda de drogas”. 

O advogado de direitos humanos Pavel Chikov, que presta assistência jurídica a Dud, argumenta que além de postada há mais de um ano, em março de 2021, a conversa com o artista que vive no Brasil não é dedicada ao tema da homossexualidade e é rotulada como para maiores de 18 anos.

Mas outras entrevistas mais recentes podem ter motivado a irritação do governo da Rússia.

Há pouco mais de um mês, Yury Dud entrevistou Nikolay Solodnikov, uma celebridade na Rússia. Ele desenvolveu um projeto de bibliotecas abertas e em 2018 criou um canal no YouTube para entrevistar figuras do mundo artístico. 

É casado com Tell Gordeeva, jornalista e documentarista que também tem um canal na plataforma e desde o início da guerra tem entrevistado pessoas contrárias ao governo Putin, como o prêmio Nobel da Paz Dmitry Muratov. 

Na conversa, Yuri Dud e Solodnikov chegam a discordar politicamente. Mas falam da guerra, e o jornalista multado expressa posições contrárias ao regime e ao presidente Putin. O programa teve mais de 6 milhões de visualizações. 

A última postagem do jornalista no Twitter, fixada no topo do perfil, é de 12 de abril. Ele promove um programa em que entrevista um casal de russos que vive em Budapeste e criou um sistema de ajuda humanitária para refugiados ucranianos. 

Na abertura e durante o programa, Yury Dud fala do drama dos que tiveram que deixar a Ucrânia por causa da invasão russa. 

Rússia quer banir ‘propaganda gay’ e de ‘valores não tradicionais’

Um dia antes de a multa ao jornalista Yury Dud ser anunciada com base na lei que proíbe a veiculação de conteúdo LGBT para menores de idade, a Rússia confirmou a intenção de estender a proibição de conteúdos sobre “relações sexuais não tradicionais” para todos os tipos de mídia e todas as idades. 

Os planos foram confirmados pela agência estatal Tass. 

O país não criminaliza a relação sexual entre dois adultos. No entanto, a divulgação de “propaganda gay”, ou seja, de conteúdos relacionados a homossexuais, seja na imprensa, em produtos culturais ou artísticos, já pode ser punida com multas e até prisão.

Essa foi a lei utilizada para justificar a multa ao jornalista. 

“Apoio totalmente a posição do [presidente da Duma, o parlamento russo] Vyacheslav Volodin de proibir a propaganda de valores não tradicionais”, disse o chefe do Comitê de Política de Informação, Tecnologias de Informação e Comunicações, Alexander Khinshtein, na segunda-feira (11) à Tass. 

“Nos propomos proibir essa propaganda independentemente da idade do público (offline, nos meios de comunicação, na internet, nas redes sociais e nos cinemas online)”, acrescentou.

Segundo a agência Tass, isso seria feito a partir de alterações na lei que já prevê punição para a divulgação de propaganda LGBT para menores de 16 anos.

Além disso, os legisladores também querem “proibir a disseminação entre crianças não apenas de propaganda, mas de qualquer outra informação que exiba relações sexuais ou perversões não tradicionais” disse Khinshtein, em comunicado no Telegram.

Antes dessa declaração, segundo a Tass, o presidente da Duma publicou no aplicativo de mensagens que apoiava a ideia da “proibição de valores não tradicionais” na Rússia.

Até 1993, ser gay era considerado um crime na Rússia e, segundo a Reuters, também uma doença mental até 1999.

A lei em vigor desde 2013 contra a divulgação de “propaganda gay” para crianças restringe diversas manifestações da comunidade LGBT, incluindo a realização de paradas do orgulho.

Ativistas apontam que ampliar essa legislação é censurar ainda mais os homossexuais russos e estrangeiros que vivem no país.

Leia também

EUA criticam condenação de jornalista cubano por ‘propaganda inimiga’: ‘acusação ridícula’

Sair da versão mobile