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Jornalistas se unem para contar como a Rússia está substituindo jornalismo por ‘monopólio da verdade’

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Londres – Um projeto colaborativo que faz um verdadeiro registro histórico do “antes e depois” da imprensa da Rússia com o início da guerra na Ucrânia foi criado por jornalistas russos, desafiando a censura e as restrições do Kremlin aos veículos de comunicação.

O “Bound by Words” (em português, “Unidos por palavras”) é uma iniciativa de equipes da agência de notícias Tomsk TV2 e dos sites Bumaga e Editor-22, que se uniram para compreender como a mídia local russa foi afetada desde fevereiro.

Com a curadoria das três equipes, o site e o canal do YouTube são alimentados com textos e vídeos produzidos por jornalistas espalhados por toda a Rússia, mostrando como o governo de Vladimir Putin suprime a mídia independente e a substitui gradualmente por um “monopólio da verdade”.

Imprensa resiste na Rússia

O site tem versões em inglês e russo, mas pode ser lido em português com ajuda de tradutores automáticos como o Google Tradutor, de forma automática pela barra de navegação. 

Na apresentação do projeto, os curadores lembram que no dia 24 de fevereiro, o primeiro dia da ofensiva russa contra a Ucrânia, muitos editores e diretores de veículos russos se questionaram o que aconteceria a partir dali para o jornalismo do país.

Em pouco tempo, bloqueios de sites jornalísticos nacionais e estrangeiros,mostraram que o futuro não era promissor. Um momento marcante foi a decisão tomada por Dmitry Muratov, vencedor do Nobel da Paz, de suspender atividades do Novaya Gazeta, por risco de perder a licença de mídia. 

As entrevistas mostram que apesar de toda a censura anterior à guerra, a Rússia tinha um ecossistema de mídia independente vibrante e criativo, com propostas inovadores de comunicar notícias e análises. E que o conflito é um divisor de águas nessa história. 

O “Bound by Words” foi fundamentado em duas questões:

“O que as equipes editoriais regionais tiveram que passar durante esse período curto, mas que mudou a vida do jornalismo na Rússia?

Quem manteve suas publicações depois de 24 de fevereiro e quais foram as consequências disso?”.

O projeto entrevistou diversos profissionais de veículos sem ligação com o governo para saber como é trabalhar sob censura, o medo das restrições e se a opinião dos jornalistas sobre a guerra coincidia com a do público.

E abordou também sobre como era o trabalho antes do aumento da repressão e o que os jornalistas esperam do futuro para a mídia independente no país.

Na sessão “Crônica”, o projeto criou uma linha do tempo das principais decisões das autoridades que mudaram o cenário da mídia na Rússia nos últimos meses, denominada “crônica da censura militar”. 

Os curadores destacam que a proposta não é apenas dar voz aos profissionais da imprensa, mas também aos defensores dela, como os advogados que atuam a favor da mídia independente, com destaque para Maria Eismont e Pavel Chikov.

Em um dos textos, os especialistas falam sobre os direitos dos veículos bloqueados e como, pelo menos em teoria, seria possível reverter a restrição:

“De acordo com a lei, o acesso ao site bloqueado pode ser restaurado. Por exemplo, se os proprietários ou editores excluírem informações proibidas. No entanto, a mídia russa informou que seus sites não foram desbloqueados mesmo após a remoção das publicações.

A mídia bloqueada tem o direito de recorrer ao tribunal. Mas hoje, de acordo com Pavel Chikov, tudo depende das circunstâncias e já existem meios de comunicação que perderam em primeira instância.”

Entrevistas em vídeo com editores e gerentes de sites jornalísticos em funcionamento fazem parte do catálogo do YouTube do “Bound by Words”. Os programas  estão em russo, mas podem ser assistidos com legendas em português.

Eles apresentam não apenas a visão do que aconteceu após a guerra, mas também um panorama da mídia inovadora da Rússia. 

Nesta entrevista o CEO da empresa de mídia Bumaga (Jornal, em tradução livre), Kiril Artememenko, de São Petersburgo, fala sobre como a guerra transformou o jornalismo. 

No site, o conteúdo é transformado em texto, em russo e em inglês. A história de pelo menos 10 publicações regionais russas que trabalham sob censura já foi contada pelos jornalistas do projeto.

Uma delas é a da TV2, compartilhada pelo editor-chefe Viktor Muchnik. “Um dia antes da invasão à Ucrânia, publicamos uma declaração antiguerra. Sentimos que a escuridão estava se formando”, conta Muchnik.

“Naquela época, pensei que a Rússia tentaria tomar territórios apenas nas regiões de Donetsk e Luhansk. Portanto, uma guerra em grande escala foi um choque até para mim.

(…) Ficou claro que a repressão da mídia seria massiva, eu pessoalmente não tinha ilusões sobre isso. Concordamos imediatamente com os colegas que trabalharíamos de acordo com nossas regras, entendendo muito bem qual seria o custo.”

Como as capas refletiram a guerra 

Outro conteúdo de destaque do “Bound by Words” é a coletânea das capas de jornais russos nos primeiros dias de guerra.

Segundo os curadores, não foram somente os veículos estatais que mostraram apoio à “operação militar”. Os dias que se seguiram à invasão ao território vizinho foram marcados por uma imprensa dividida, com muitos jornais que não foram fundados por entidades governamentais também apoiando a ação do exército.

“Essa rara unanimidade que respingou nas primeiras páginas da imprensa russa foi observada em todas as suas regiões, sem exceção”, destaca o projeto.

“Nesse contexto, expressar uma posição antiguerra teve consequências dramáticas para os veículos que fizeram isso.”

 

Entre as represálias destacadas estão as sofridas pelo grupo editorial VK Media, que publicou em todos as primeiras páginas de seus quatro jornais mensagens antiguerra. Por isso, foi multado em 1,5 milhão de rublos (R$ 149,2 mil).

O jornal Vsyo dlya Vas foi removido de bancas em uma cidade por trazer a frase “Não à guerra” em sua capa.

E em outra região, a polícia exigiu relatórios dos gerentes das lojas que venderam o jornal Parma-Novosti com a manchete “O que não deve ser chamado de guerra”.

O Bondy By Words em inglês pode ser acessado aqui, com link para os vídeos no YouTube.

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