Londres – O Reino Unido anda “acéfalo”, vivendo uma combinação de férias de verão com os últimos dias de um primeiro-ministro no cargo, e nesse contexto se desenrola a saga da extradição de Julian Assange. 

No cargo é maneira de dizer, pois Boris Johnson viajou para celebrar a lua de mel e emendou em férias, enquanto vans tiraram seus pertences de Downing Street, 10. Ele nem vai voltar a morar lá até a posse do novo chefe de governo, permanecendo na residência de verão utilizada pelos ocupantes do cargo. 

Enquanto os dias passam no que foi apelidado de “zombie government”, o caso que muitos consideram divisor de águas na história da liberdade de imprensa segue em compasso de espera: Julian Assange continua preso na penitenciária de Belmarsh.

O Reino Unido e a extradição de Assange 

A secretária do Interior Priti Patel, a quem hoje cabe a decisão, continua no cargo desde que Boris Johnson renunciou, no período de transição e apoia a provável nova primeira-ministra, Liz Truss.

Truss, que está bem adiante de Rishi Sunak nas pesquisas, é aliada de primeira hora de Boris Johnson, que deve continuar com influência sobre o novo governo.

Ela própria, hoje secretária Nacional de Relações Exteriores, tem um perfil pouco inclinado a perdoar um suposto crime de guerra ou a querer arrumar uma inimizade com um aliado poderoso como os EUA, contrariando as decisões judiciais que autorizaram a extradição de Julian Assange.

A mídia britânica já especula sobre os nomes fortes do governo Truss. A secretaria do Interior (Home Office), iria para Suella Braverman, parlamentar que chegou a se lançar candidata ao cargo máximo mas não obteve votos suficientes e passou a apoiar a provável nova primeira-ministra. 

Formada em direito em Cambridge, ela é a atual procuradora-geral do Reino Unido, alinha-se aos que defenderam o Brexit (que tendem a ser mais nacionalistas) e apoia políticas duras como a controvertida transferência de refugiados para um centro de migrantes em Ruanda. 

Isso significa que são poucas as chances de a nova primeiro-ministra ou de sua secretária mudarem de opinião sobre a extradição. E o atual já disse que vai seguir a decisão judicial, que autorizou o envio do fundador do Wikileaks para os EUA.

Saindo antes ou depois da mudança do comando do país, os sinais são de que por parte do governo britânico não se pode esperar muito. 

Salvo uma reviravolta no caso, ele poderia ser extraditado antes da posse do novo primeiro-ministro (ou nova), para preservá-lo(a) do desgaste.

Ou depois, caso ele (ou ela) queira usar o ato para simbolizar firmeza e proximidade com os EUA. Estrear no cargo comprando uma briga com um aliado militar e econômico não seria de se esperar. 

18 processos e 175 de prisão 

Pelo vazamento de segredos das guerras do Irã e do Iraque, Assange responde a 18 processos, que podem valer 175 anos em uma prisão de segurança máxima nos EUA.

A historia da perseguição foi iniciada na administração de Barack Obama, que o considerava um traidor mas não chegou a abrir processos, porque isso envolveria um embate com os veículos que haviam reproduzido as informações.

Sob o governo Trump, o Departamento de Estado moveu as ações judiciais, agora sob Joe Biden.

Quando o democrata tomou posse, partidários de Assange e sua mulher, Stella, esboçaram esperança de que o novo presidente poderia desistir das acusações, mas isso não aconteceu.

Seria improvável, pois em 2010, então vice-presidente dos EUA, Biden disse que Assange era um “terrorista de alta tecnologia”, que colocou vidas em risco e tornou a vida do país mais difícil.

Este é o ponto central do caso Assange, e onde ele deixa de ser uma causa individual para se transformar em coletiva.

Sua possível extradição terá com impacto sobre o jornalismo e sobre a democracia.

O fundador do Wikileaks não é unanimidade. Há quem o critique, e quem não o considere um jornalista.

É o que acontece com o CPJ (Comitê de Proteção a Jornalistas), que em um manifesto há alguns anos disse que não o considerava como tal porque o Wikileaks não é um veículo com publicação regular.

Mas o mesmo CPJ, assim como as organizações de liberdade de imprensa, de expressão e de direitos humanos, entende que o vazamento de segredos importantes para a sociedade faz com que os processos contra ele representem uma ameaça.

Se condenado como jornalista ou como fonte, Julian Assange servirá de modelo para processos contra outros jornalistas, empresas de mídia ou informantes, podendo levar a autocensura da mídia e medo por parte de quem poderia revelar histórias de interesse da sociedade.

O jornalismo investigativo se sofisticou e tem jogado luz sobre escândalos de corrupção e crimes por meio de redes colaborativas globais, que contam com o acesso a documentos capazes de comprovar acusações. 

Colocar isso em risco com a extradição de Assange e seu julgamento nos EUA é um retrocesso.

Por isso, partidários de Assange e do jornalismo livre tentam de tudo para evitar a extradição. 

Um dos atos recentes foi um processo movido por dois advogados e dois jornalistas denunciando que a CIA os espionou quando visitaram o fundador do Wikileaks na embaixada do Equador em Londres.

É possível que não dê em nada, mas são as armas de uma guerra para evitar a extradição de Julian Assange, que pode ter repercussões importantes para o futuro do jornalismo. E que merece ser acompanhada.