Londres – A história de uma espiã russa em Nápoles, revelada em uma reportagem investigativa conjunta do sites Bellingcat e Insider, junto com a revista alemã Der Spiegel e o jornal  italiano La Repubblica, parece saída de uma filme — mas aconteceu na vida real do mundo de espionagem russo. 

Passando-se por uma designer de jóias peruana, Maria Adela Kufeldt Rivera, na vida real Olga Kolobova, é uma espiã russa que viveu na Europa quase 10 anos, infiltrou-se nos altos círculos de Nápoles, aproximou-se de representantes da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e deixou a Itália às pressas em 2018, alegando estar com câncer. 

A história foi revelada em momento de tensão máxima entre a Rússia e a OTAN, que considera o país “a ameaça mais significativa e direta” à segurança dos países que compõem a aliança. Do outro lado, o governo de Vladimir Putin critica as “ambições imperialistas e não aceita a hipótese de Ucrânia ingressar na organização. 

Sites que investigaram caso da espiã russa em Nápoles banidos na Rússia

A investigação é um exemplo do que vem se tornando cada vez mais comum no mundo do jornalismo: a colaboração transnacional para revelar histórias combinando o trabalho de repórteres experientes com ferramentas tecnológica para vasculhar arquivos e levantar provas.

Sediado na Holanda, o Bellingcat foi criado pelo jornalista britânico Eliot Higgins em 2014, e é autor de grandes reportagens que expuseram crimes e corrupção, inclusive na Rússia. 

O The Insider foi criado na Rússia pelo jornalista e ativista Roman Dobrokhotov, mas agora tem sua redação baseada em Riga, capital da Letônia.

Em julho, o Ministério da Justiça da Rússia incluiu os dois na lista de “organizações indesejáveis” no país. Eles já faziam parte da relação de “agentes estrangeiros” e estavam bloqueados desde a invasão da Ucrânia.

E a Der Spiegel e o La Reppublica estão entre os mais premiados e respeitados veículos de imprensa de seus países. 

Os quatro juntaram as peças de um enredo mirabolante que começou a se desenrolar em agosto de 2005, quando uma mulher chamada Maria Adela Kufeldt Rivera tentou obter cidadania peruana. 

A equipe utilizou informações de fontes abertas, arquivos acessíveis ao público, dados obtidos do governo do Peru, bancos de dados russos vazados e entrevistas com pessoas que se tornaram amigas da espiã para construir a história. Algumas falaram sob condição de anonimato.

Advogados apresentaram ao Cartório de Registro Civil de Lima uma certidão de nascimento de 1978, emitida na cidade peruana de Callao, e uma certidão de batismo de uma igreja local, emitida duas semanas após o nascimento, para pedir a cidadania de Maria Adela.

Mas o cartório recusou alegando falsidade do documento. A igreja onde ela teria sido batizada foi construída em 1987, nove anos após a cerimônia. 

Ainda assim, Maria Adela sustentou a farsa. Ela contava a amigos ter nascido em Callao, de pai alemão e mãe peruana.

Seu pai teria abandonado a família. Em 1980, mãe e filha teriam ido para a União Soviética para os Jogos Olímpicos. Mas a mãe teve que voltar urgentemente para casa e deixou Maria Adela para trás, aos cuidados de uma misteriosa família soviética.

Série do passaporte de Maria Adela indica emissão pelo GRU

Em 2006, um ano após uma tentativa frustrada de obter a cidadania peruana, Maria Adela recebeu um passaporte russo.

De acordo com a reportagem ela então trabalhou como “especialista líder” na Universidade Estadual de Moscou e morava na cidade. Mas os jornalistas que desvendaram a história não encontraram ninguém que soubesse algo sobre ela.

E descobriram que o primeiro passaporte russo de Maria Adela pertencia à mesma série que o Departamento Central de Inteligência (GRU) emitiu para pelo menos seis outros membros de sua equipe de agentes. 

Entre eles estão Sergei Lyutenko, um dos supostos envenenadores do armeiro búlgaro Yemelyan Gebrev, e Alexander Kovalchuk, suspeito de estar envolvido no envenenamento do ex-espião Sergei Skripal e sua filha Yulia, no Reino Unido. 

Então eles descobriram que o proprietário do passaporte de série especial usado pelos oficiais do GRU era uma pessoa com um nome que não estava em nenhum banco de dados russo.

A investigação constatou que a mulher recebeu pelo menos três passaportes russos – um nacional e dois estrangeiros. Todos esses documentos estavam dentro da faixa de números de documentos usados ​​pelos oficiais do GRU.

Espiã russa virou celebridade em Nápoles 

Maria Adela começou a circular na Europa entre entre 2009 e 2011. A investigação jornalística encontrou fotos dela em redes sociais.

A mulher era bem relacionada. Em Malta, tornou-se amiga de Marcelle D’Argy Smith, ex-editora da revista Cosmopolitan.

Segundo Smith, Maria Adela disse na época que estudava gemologia em Paris, mas ia muitas vezes à ilha, onde teria um namorado. 

Os primeiros dados sobre viagens internacionais que os jornalistas que se associaram para a investigação conseguiram encontrar datam de outubro de 2011.

Maria Adela fez naquele ano a primeira de muitas viagens de trem entre Moscou e Paris.

O passaporte em que ela viajava na época foi emitido em agosto de 2011. Seu número diferia em apenas um dígito do número do passaporte de Denis Sergeev, o suposto participante do envenenamento de Skripal.

A jornalista Marcelle D’Arji Smith contou aos repórteres sobre este período da vida de Maria Adela. Primeiro ela teria estudado gemologia em uma universidade em Roma. E em fevereiro de 2011, foi para o Reino Unido como parte de uma viagem de estudos.

Em outubro de 2011, mudou-se para Paris para concluir o mestrado em gestão. Os dados da imigração italiana obtidos pelo La Repubblica corroboram a lembrança de D’Argy Smith.

Eles mostram que Marie Adela viajou pela primeira vez com vistos franceses de curta duração e em setembro de 2011 a espiã recebeu um visto de estudante.

Desses anos, Smith lembra que Adela lhe pediu para apresentá-la a alguns políticos ou figuras da sociedade inglesa, mas o assunto não foi além de conversas, segundo ele relatou aos jornalistas. 

Em 2012, Maria Adela se casou com um homem que tinha cidadania italiana, equatoriana e russa. O Insider nomeia apenas suas iniciais – D. M. Este homem nasceu em Moscou de mãe e pai russos do Equador.

Ele recebeu um passaporte russo na Embaixada da Rússia no Equador pouco antes do casamento. Um ano depois, foi para Moscou, onde morreu em julho de 2013, aos 30 anos.

A causa da morte foi “pneumonia dupla e lúpus eritematoso sistêmico”.

Amigos próximos do homem disseram à equipe de reportagem que não sabiam nada sobre esse casamento e não ouviram falar de nenhuma Marie Adela. Um deles também observou que seu amigo foi diagnosticado com lúpus menos de dois meses antes de sua morte.

Logo após a morte de seu marido, Maria Adela registrou a empresa Serein SRL na Itália, cuja finalidade era a produção e venda de joias e artigos de luxo. Joias baratas compradas em lojas online chinesas teriam sido vendidas sob essa marca.

Maria Adela se estabeleceu nos arredores de Nápoles e, como observa a reportagem, “tornou-se parte integrante da vida social local”.

Ela abriu a joalheria e boutique de luxo, transformando-a mais tarde em um clube de moda, e depois chefiou a filial da organização de caridade Lion’s Club.

Aí é que a história deixa de ser apenas uma excentricidade para virar um problema político, virando um constrangimento para a organização que defende a posição da Ucrânia na guerra. 

A espiã russa e a OTAN

A filial do Lion’s Club, localizada em Nápoles, foi criada por oficiais da OTAN, com quem a espiã russa Maria Adela conseguiu construir uma relação muito próxima.

De acordo com as memórias do tenente-coronel Torsten S., oficial da Bundeswehr alemã, o chefe do Lion’s Club de Nápoles recomendou Maria Adela como uma pessoa que poderia reviver o trabalho da organização.

Os jornalistas entrevistaram três conhecidos de Maria Adela associados à OTAN.

Eles disseram que naquela época ela se relacionava com muitos funcionários da OTAN, tornou-se amiga de vários oficiais e muitas vezes interagia com eles nas redes sociais. Algumas dessas conexões eram de natureza romântica.

Uma das pessoas próximas a Maria Adela era o coronel Shelia Bryant, então inspetor-geral das Forças Navais dos EUA na Europa e na África.

Bryant disse aos repórteres que achou a história de Marie Adela confusa e pouco convincente: “Por que alguém deixaria seu filho na União Soviética?”

A fonte de sua renda também levantou questões: “Ela abriu uma loja e muitas vezes trocava de apartamentos caros, apesar de a origem do dinheiro não ser clara”.

Shelia Bryant disse que Maria Adela interagiu com funcionários e oficiais americanos, belgas, italianos e alemães da OTAN.

Ela participou de muitos eventos organizados pela aliança ou pelos militares dos EUA, incluindo os bailes anuais da OTAN e do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA.

Além disso, a investigação constatou que desde 2013 a espiã viajava regularmente para o Bahrein, onde conseguiu estabelecer bons contatos.

Em dezembro de 2014, foi publicada uma fotografia na conta do Facebook da sua empresa, em que ela presenteia com abotoaduras o então primeiro-ministro , Príncipe Khalifa bin Salman Al Khalifa.

A trajetória de Maria Adela na Europa terminou logo após a publicação de uma investigação do The Insider e do Bellingcat que mencionava uma série de passaportes emitidos pelo GRU. 

Logo em seguida, em setembro de 2018, sem explicar nada aos amigos, ela voou para Moscou.

Meses depois, fez um post em redes sociais informando que estava com câncer e que seu cabelo voltou a crescer após a quimioterapia.

A última vez que “Maria Adela” deu sinal de vida aos foi em 4 de dezembro de 2021.

Ela escreveu para Marcelle D’Argy Smith: “Cara, cara Marcelle! Há muitas coisas que eu não posso (e nunca poderei) explicar! Mas eu sinto sua falta muito, muito, muito…”

Depois de deixar Nápoles, já na Rússia, a espiã Maria Adela – agora como Olga Kolobova – comprou um carro Audi e adquiriu um pequeno apartamento em um prestigiado distrito de Moscou, e depois um apartamento de 100 metros no complexo residencial de elite Seliger City, no valor de cerca de 600 mil euros.

Mas a comprovação de que Maria Adela e Olga eram a mesma pessoa não foi simples. Segundo a reportagem, não havia fotos dessa pessoa nas mídias sociais russas, portanto, as pesquisas de face reversa não produziram resultados.

E números de telefone russos que foram listados como contatos para sua identidade falsa em sua papelada de “criação de identidade” de 2007  foram registrados para uma “pessoa anônima” (o que era outra indicação de sua afiliação a um serviço secreto, pois todos os números na Rússia devem ser registrado em nome de uma pessoa real).

Uma busca reversa no banco de dados de passaportes da Rússia não resultou em correspondências confiáveis de semelhança facial. A equipe então começou a analisar correspondências faciais de baixa pontuação, mas os resultados não foram conclusivos. 

Investigando outras pistas, os repórteres encontraram uma nova fotografia de Olga Kolobova, obtida de um denunciante com acesso ao banco de dados de carteiras de motorista da Rússia. 

A foto – que parecia ser de 2021 – proporcionou uma combinação convincente entre os rostos de “Maria Adela” e Olga Kolobova usando a ferramenta de reconhecimento facial do Microsoft Azure.

Segundo a investigação, Olga é filha de um ex-chefe da Faculdade Militar da Universidade dos Urais em Ekaterinburg, que teria sido condecorado por “pelos serviços prestados à Pátria no estrangeiro, notadamente em Angola, Iraque e Síria”.

A reportagem afirma que os espiões do GRU são frequentemente recrutados entre filhos de oficiais militares de alto escalão, inclusive com antecedentes de inteligência, o que se encaixaria no roteiro.

Olga, ou Maria Adela, atualmente promove conteúdo pró-guerra do grupo Amigos de Putin em sua conta na rede social russa Odnoklassniki, segundo a investigação.