Londres – Em 70 anos de reinado, a Rainha Elizabeth II visitou 117 nações – incluindo o Brasil – representando o Reino Unido e consagrando-se como o mais forte elemento de formação do soft power britânico, conceito que define capacidade de um país influenciar os demais sem uso de armas.
Em 1º de novembro de 1968, em durante da ditadura militar, a jovem e sorridente Elizabeth II, então com 41 anos desembarcou em Recife, seguindo depois para Salvador, Brasília, São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro, com direito a um jogo no Maracanã em que Pelé marcou seu 900º gol.
A última viagem foi em 2015, a Malta, onde ela morou com o príncipe Philip antes de se tornar rainha. A imprensa britânica calculou que a monarca percorreu 1.032.513 milhas, o equivalente a 42 vezes a circunferência da Terra.
Embaixador do Brasil entregou livro à Rainha Elizabeth
Para comemorar os 50 anos da visita, o Itamaraty, por meio da Embaixada do Brasil em Londres, produziu em 2018 um livro resgatando imagens e notícias que documentam o encantamento dos brasileiros com a rainha da Inglaterra, chamado “O protocolo perde lugar para a afeição”.
O livro foi dado de presente à rainha em 2019 pelo atual Embaixador, Fred Arruda, quando assumiu o posto e apresentou à monarca suas credenciais. A rainha recebeu também a moeda e o selo comemorativo dos 50 anos de sua visita de 11 dias ao Brasil.
Today, Her Majesty The Queen held an audience with His Excellency Fred Arruda who presented the Letters of Recall of his predecessor and his own Letters of Credence as Ambassador from the Federative Republic of Brazil.
📷 @PAImages pic.twitter.com/a3J7iqP4IQ— The Royal Family (@RoyalFamily) February 19, 2019
Foi a primeira vez que a América do Sul recebeu um monarca britânico.
Segundo a Embaixada, Elizabeth II lembrava de sua passagem pelo Brasil em detalhes, e com carinho. A embaixada divulgou uma nota oficial lamentando a morte ocorrida na tarde desta quinta-feira (8).
Brazil is deeply saddened with the passing of Queen Elizabeth. As the world mourns her departure, we remember with fondness her trip to Brazil, where she was received with great warmth. Her decades-long sense of duty and devotion to her people will not be forgotten. @RoyalFamily pic.twitter.com/W9hUFQ8jf2
— Brazil Embassy UK (@BrazilEmbassyUK) September 8, 2022
No Brasil, rainha Elizabeth II inaugurou o Masp
Além de ter sido saudada por multidões nas ruas no Brasil, Elizabeth II fez o circuito turístico típico de estrangeiros que visitam o país e ainda teve alguns privilégios reservados a uma estrela.
Um deles foi ter inaugurado o Masp (Museu de Arte Moderna de São Paulo). Nesta foto, ela aparece semi-oculta em uma obra de arte modernista.
O patrono do museu era o empresário de mídia Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, império de jornais que tinha entre seus títulos o Correio Braziliense e o Diário de Pernambuco, que cobriram extensivamente a visita.
Chateaubriand havia servido como Embaixador do Brasil em Londres e tinha laços com autoridades britânicas.
Encontro da rainha da Inglaterra com o rei do futebol
Representando o país onde nasceu o futebol, Elizabeth II e o príncipe Philip cumpriram o roteiro dos turistas que visitam o Rio de Janeiro, batendo ponto no Maracanã para assistir a uma partida entre as seleções carioca e paulista.
No jogo, Pelé marcou seu 900º gol. Segundo registrou a imprensa na época, não houve anúncio nos alto-falantes sobre presença da rainha, mas os 100 mil espectadores saudaram a monarca ruidosamente.
No final, Pelé e Gérson foram à Tribuna de Honra para receber o troféu das mãos de Elizabeth II, e ele teria ficado emocionado.
Ao ser apresentada ao rei do futebol, a rainha da Inglaterra disse que já o conhecia de nome e que ficou feliz em vê-lo jogar.
Visita da Rainha Elizabeth ao Brasil começou em Recife
A viagem da rainha Elizabeth II e do Philip ao Brasil começou a ser notícia mesmo antes da chegada do casal.
Uma reportagem do Diário de Pernambuco a partir de um despacho da agência France Presse confirmou a visita, desfazendo rumores de poderia ser cancelada por motivo de doença.
Não era a Covid-19, e sim a varicela, contraída pelo seu sobrinho.
No desembarque no Brasil, a Rainha Elizabeth apareceu com look adequado ao clima tropical, trajando um vestido de mangas curtas – porém sem deixar de lado o colar de pérolas e as luvas.
O príncipe Philip também se vestiu de acordo com o ambiente, de terno branco. E como manda o protocolo, sempre atrás da rainha.
Entusiasmado, o Diário de Pernambuco fez uma projeção que dificilmente se confirmaria: de que a Rainha Elizabeth apertaria mais de 10 mil mãos em 11 dias no Brasil.
Isso daria 900 cumprimentos por dia, ou mais de um por segundo, considerando que ela passasse metade dos dias só apertando mãos.
O encantamento causado no povo recifense foi confirmado pelas imagens. Os jornais estimaram a multidão em 200 mil pessoas, e destacaram que a rainha agradeceu repetindo várias vezes “muito obrigada” em bom português.
Dali eles seguiram para Salvador no navio real Britannia, deixando para trás um público formado por famílias entoando “God Save The Queen”, o hino inglês.
Leia também | Nova coleção de selos celebra em imagens os 70 anos de Elizabeth II como rainha da Inglaterra
Rainha Elizabeth em Salvador
Na recepção a Elizabeth II no Palácio da Aclimação, as mulheres capricharam no visual e nos chapéus, dignos de uma corrida de cavalos em Ascott, a competição que é símbolo da aristocracia inglesa.
Elizabeth novamente aproveitou para exibir os braços, aproveitando o calorzinho tropical, sempre de luvas e pérolas.
Em tempos de segurança relaxada, sem os riscos atuais, Elizabeth e Philip visitaram o Mercado Modelo, onde foram recebidos com uma chuva de pétalas de rosa, segundo relata o livro.
Ganharam uma penca de balangandãs em um estojo de jacarandá e até um berimbau, presenteado por um barraqueiro que furou o bloqueio.
A rainha ganhou também um sambinha improvisado pelo grupo de samba de roda Camafeu de Oxóssi, que dizia:
” Esta visita honrosa / de beleza sem igual / Deus a salve, Majestade / com toda a Família Real”
A imprensa calculou que mais de 400 mil pessoas estariam nas ruas de Salvador para recepcionar a rainha, muitas vindas do interior.
Mas houve um incidente típico dos tempos do governo militar.
Segundo relato do jornal Correio da Manhã, no momento do embarque do casal no iate Britannia um fotógrafo do Jornal da Bahia foi agredido a golpes de cassetete por um sargento da Capitania dos Portos – e liberado depois de interferência de um diplomata do Itamarati.
O governador Luiz Viana Filho publicou um anúncio saudando a presença no Brasil da monarca da Inglaterra, “mãe de todas as liberdades”, em uma montagem combinando o retrato da rainha Elizabeth II em um camafeu ao Elevador Lacerda.
A recepção oficial teve a presença de artistas e intelectuais como Jorge Amado, Mário Cravo e o pintor Carybé. Um quadro dele foi presenteado ao casal pelo governador.
Em Brasília, Rainha Elizabeth visita os três poderes
O livro feito pelo Itamaraty observa que muitas matérias sobre a visita destacaram a pontualidade britânica. Isso aconteceu em Brasília, onde o avião com a Rainha Elizabeth e o príncipe Philip aterrissou dois minutos antes do previsto.
Um dos compromissos foi conhecer a Torre de TV, com look pop e joelhos à mostra. No braço direito, a típica bolsinha que usa até hoje.
Seguindo o protocolo de visitas de Estado, ela discursou no Itamaraty, sempre estilosa e novamente com vestido de mangas curtas.
O Correio Braziliense, de Assis Chateaubriand, destacou a simpatia da Rainha Elizabeth durante a visita à nova capital federal.
Também registrou a visita ao Congresso Nacional, que aconteceu no dia 6 de novembro, com o costumeiro entusiasmo afirmando que “jamais o recinto da Câmara dos Deputados viveu dia mais festivo”.
No discurso feito durante a visita ao Supremo Tribunal Federal, Elizabeth II disse que nunca esqueceria “essa nova e fascinante capital federal”, construída em torno dos três poderes fundamentais, o Executivo o Legislativo e o Judiciário.
E afirmou que os três deveriam funcionar em uníssono, “por ser o primado do Direito que constitui o bem mais precioso do Estado civilizado.”
As palavras não chegaram aos ouvidos do Executivo.
Pouco mais de um mês depois, em 13 de dezembro, seria decretado pelo presidente Costa e Silva o Ato Institucional nº 5, que cassou mandatos de parlamentares contrários ao governo militar, permitiu intervenções e agravou a censura e tortura de opositores.
Rainha Elizabeth em São Paulo
A rainha da Inglaterra não poderia adivinhar o que vinha pela frente no país, e seguiu para São Paulo para outro desfile de charme.
A Folha de S.Paulo destacou a simplicidade e serenidade da monarca, com uma foto panorâmica feita no Edifício Itália mostrando a paisagem de edifícios da cidade.
Vestidos sem manga continuaram sendo a marca do look da rainha no Brasil.
Passeando em carro aberto sem medo, Elizabeth II encantou os paulistanos.
O jornal Estado de S.Paulo se derreteu pela simpatia, dizendo que “a rainha, não sabe, mas ela ganhou São Paulo”. E que na boca do povo, ela deixou de ser rainha para ser apenas Elizabeth.
O então governador Abreu Sodré ofereceu um jantar, em que se apresentaram Wilson Simonal, Jair Rodrigues e Elza Soares. Todos já morreram, e Elizabeth II segue firme no trono britânico.
Rainha Elizabeth em Campinas
A imprensa registrou que a visita a Campinas foi dedicada às coisas simples do interior, apesar de um dos compromissos oficiais ter sido no Instituto Agronômico, um centro de pesquisas. 
E quem diria, Elizabeth ficou descalça. Foi o que relatou o Estado de S.Paulo, em matéria assinada por um repórter atento que fiscalizou cada movimento da monarca durante uma corrida de cavalos, na qual que parecia cansada.
Em um determinado momento ela tira o pé do sapato e apoia sobre o bico, o que foi suficiente para virar manchete.
Rainha Elizabeth no Rio de Janeiro: como qualquer turista
O Rio de Janeiro foi a última etapa da visita ao Brasil, e as cenas de cartão-postal fizeram parte do roteiro da Rainha Elizabeth II.
O livro conta que o então governador da Guanabara, Francisco Negrão de Lima, presenteou a Rainha com uma coleção de discos de importantes nomes da MPB, como Noel Rosa e Elizete Cardoso.
A monarca não foi à praia, mas conheceu os pontos turísticos tradicionais, como o Mirante Dona Marta, o Outeiro da Glória, o Museu de Arte Moderna e o Monumento aos Pracinhas
O Rio foi também palco de um elegante jantar oferecido pela Rainha Elizabeth e pelo príncipe Philip a autoridades, incluindo o presidente Costa e Silva e sua mulher, Iolanda, a bordo do iate real Britânia. Foi uma das poucas vezes em que ela apareceu em trajes de gala e com tiara.
O mesmo jornal registrou que “até jornalistas” puderam participar. Mas o motivo da surpresa não era relacionado à censura à imprensa que vigorava na época, e sim ao fato de que teria sido a primeira vez que jornalistas puderam cobrir uma solenidade no Britannia.
O estilo da rainha não passou despercebido pelos jornalistas de moda. O suplemento Ela, do jornal O Globo, dedicou uma edição especial aos looks de Elizabeth II e à moda britânica, sob o título de “Ela reflete o charme de sua gente”.
O design da página remete à linguagem visual pop, alinhada ao estilo de moda ditada pela “swinging London” na década de 60.
Outro compromisso destacado pelo livro produzido pela Embaixada Brasileira sobre a visita da rainha Elizabeth ao Brasil foi ao bairro do Caju, na Zona Portuária do Rio.
Ela aconteceu bem antes de a região ser revitalizada e ganhar o Museu do Amanhã. Mas o motivo da visita era um projeto futurístico para a época: a construção de uma ponte ligando o Rio a Niterói.
A imprensa documentou que ela e o príncipe Philip tiveram curiosidade de saber detalhes sobre o projeto. Uma placa foi descerrada, ao lado do então ministro dos Transportes Mário Andreazza.
A Rainha, o Rei e o templo do futebol
O livro relata que a despedida do Rio e do Brasil aconteceu no Maracanã, onde o casal real assistiu a um jogo entre as seleções paulista e carioca bem instalada na Tribuna de Honra, mas à vista da multidão.
Ela deu sorte aos paulistas, que venceram os anfitriões por 3 a 2.
E deixou o rei do futebol encabulado, segundo noticiaram os jornais, quase sem conseguir agradecer.
Na partida a bordo de um avião da finada Varig, companhia aérea que teve vida mais curta do que a da rainha, a reverência real que marcou o fim de 11 dias de show de charme típico de Elizabeth II em suas viagens pelo mundo.
As imagens foram publicadas com a autorização da Embaixada do Brasil em Londres.
Leia também | TVs britânicas acompanham ao vivo estado de saúde da rainha Elizabeth depois que família é chamada a Balmoral
