Londres – A dois dias do enterro da rainha Elizabeth, a fila para ver o caixão e os acontecimentos em torno dela continuaram como principal assunto dos jornais, TVs e redes sociais, com direito uma hashtag no Twitter, #TheQueue.
Na manhã deste sábado, a principal notícia é a espera é de 24 horas para chegar ao salão do Parlamento onde está o caixão.
As autoridades estão pedindo às pessoas para não irem mais ao centro de Londres para tentar um lugar. Com o estímulo involuntário da mídia, no entanto, vira um pedido difícil de atender.
As emissoras de TV continuam transmitindo imagens ao vivo da fila e uma repetição interminável de entrevistas com pessoas que aguardam para prestar a última homenagem ou que já o fizeram. A pauta se tornou um espetáculo de falta de criatividade jornalística, se é que dá para ser criativo nessa situação.
Caminhando desajeitadamente junto com os entrevistados, repórteres fazem as perguntas óbvias: “por que você veio aqui?” ou “há quantas horas você está” ou ainda “está sendo cansativo?”.
Na saída, as perguntas são sobre as impressões. E as respostas são as esperadas, pois quem se atreveria a dizer que está na fila para ver alguém que não admira ou que não gostou do que viu?
Members of the public have told Sky News that witnessing the Queen's four children standing vigil at Westminster Hall was an 'unbelievable experience' and 'the most moving thing'.
Read more here: https://t.co/kWJwB7Q1Cm pic.twitter.com/pY2iWy3kXW
— Sky News (@SkyNews) September 16, 2022
A cobertura da fila é um reflexo do show midiático planejado para os funerais de uma rainha que atravessou todas as eras das tecnologias de mídia.
Há eventos planejados para cada um dos 10 dias entre a morte e o enterro, a fim de criar novos focos de interesse para jornais, TVs e redes sociais.
Algumas surpresas – agradáveis – acontecem, como a “descoberta” do ex-jogador de futebol David Beckham esperando na fila por 13 horas para se despedir da rainha.
A história virou hit nas redes sociais e nas TVs, e foi registrada em todos os jornais, alguns com chamadas na capa.
Leia também | David Beckham passa 13 horas na fila e se emociona ao se despedir da rainha Elizabeth II
Outras notícias são preocupantes, como o esfaqueamento de dois policiais, o homem que tentou se aproximar do caixão e foi detido na noite de sexta-feira e outro preso ao assediar mulheres na fila.
O cerimonial programou três eventos para ontem: uma visita do príncipe Charles ao País de Gales, parte de seu tour por todas as nações do reino; um encontro dos príncipes William e Kate com tropas de países importantes da Commonwealth e uma vigília dos filhos da rainha Elizabeth, em horário nobre.
Queen Elizabeth II’s four children stand vigil by her coffin in Westminster Hall.
King Charles, Princess Anne, Prince Andrew and Prince Edward will guard their mother Lying-in-State for 15 minutes. pic.twitter.com/YFUwPh2nnY
— Royal Central (@RoyalCentral) September 16, 2022
Apesar da importância política da visita a Gales, a vigília recebeu mais atenção da mídia impressa, com três jornais optando pela foto do rei Charles contrito em sua primeira página.
Mas nem todos os jornais seguiram o roteiro de endeusamento da monarquia e da rainha Elizabeth. O The Guardian voltou a desafiar a narrativa oficial, questionando a presença do governante da Arábia Saudita acusado de violações dos direitos humanos.
Veja como os jornais noticiaram os funerais da rainha Elizabeth
O The Guardian deu no sábado mais espaço para a morte da rainha Elizabeth do que nos outros dias, mas não como os assessores do Palácio de Buckingham gostariam. O jornal destaca as críticas à vinda do do príncipe saudita Mohammed bin Salman a Londres para homenagear Elizabeth II.
O movimento partiu de Hatice Cengiz, companheira do jornalista Jamal Khashoggi, que foi assassinado dentro da embaixada saudita em Istambul supostamente a mando do governante. A presença do líder foi condenada por Cengiz e por grupos de direitos humanos como uma “mancha” na memória do monarca.
O tema é espinhoso para a monarquia, que tem ligações de amizade com a realeza árabe em vários países, e particularmente para o rei Charles, que recentemente se envolveu em controvérsias envolvendo doações de milionários árabes para a sua fundação beneficente.
Na outra metade da capa do Guardian foi mais ameno, com a foto de David Beckham e sua tentativa de ficar anônimo com um boné tradicional.
No momento da foto, ele já tinha sido descoberto e agentes de segurança tentavam fazer a fila andar.
A fila de 24 horas para ver a rainha Elizabeth foi a chamada do jornal i, mas o subtítulo já aponta para o futuro, repercutindo declaração do rei Charles feita na sexta-feira sobre sua preocupação com o custo de vida, maior problema do Reino Unido neste momento.
Embora o rei não tenha poderes de governo, expressar preocupação com o povo é um bom movimento para neutralizar a percepção de uma monarquia desconectada da realidade dos súditos.
O jornal também destacou a queda da libra e os problemas econômicos vividos pelo país que tem um novo rei como chefe de Estado, substituindo a rainha Elizabeth em um momento difícil da vida da nação.
O tabloide Daily Star faz uma brincadeira com a suposta paixão dos britânicos por filas, com uma chamada dizendo que os britânicos estão fazendo o que fazem melhor.
O jornal mostra a segunda fila que se formou depois que a fila “oficial” foi fechada durante seis horas na manhã de sexta-feira para dar vazão aos que já estavam aguardando para ver o caixão da rainha Elizabeth.
E destaca também a celebridade da fila, Beckham. O ex-jogador parece ter uma sincera admiração pela rainha, tendo sido condecorado com a OBE (Order of the British Empire), mas a publicidade favorável vem em boa hora, depois de uma controvérsia sobre um contrato para promover a Copa do Catar.
Mais sério, o jornal Financial Times não tem no sábado manchete sobre a morte da rainha Elizabeth, mas escolheu a foto da fila com a London Bridge ao fundo para ilustrar sua capa, com uma legenda que fala da impressionante espera de 24 horas.
London Bridge é o nome do plano para os funerais da rainha Elizabeth.
Diferentemente dos outros jornais, no The Times a foto é a da sempre estrela Kate, em visita a tropas da Austrália, Nova Zelândia e Canadá, um ato político estratégico para reforçar os laços com nações onde movimentos para não ter mais um monarca inglês como chefe de Estado ganham força depois da morte da rainha Elizabeth.
O príncipe William estava junto, mas o jornal preferiu uma capa estética, com a elegante Kate em uma simbólica pose com a mão sobre o coração.
A reportagem principal, no entanto, também é sobre a fila, assinada pelo colunista político Quentin Letts. A manchete é emocional: “Silêncio fala alto”, abrindo um texto em primeira pessoa e cheio de poesia que não costuma ser o padrão de uma reportagem de primeira página de jornal diário importante.
Na coluna lateral, o The Times compensa a poesia com notícia, destacando a preocupação do rei Charles com o custo de vida.
“Uma nação” é a chamada da capa do jornal Daily Mirror, inteiramente ocupada por uma foto do rei diante do caixão da Rainha Elizabeth e fotos menores com momentos da fila durante o dia. O texto salienta a união do país em um “derramamento de amor e respeito”.
O mesmo tom emocionado foi usado pelo Daily Express, com a mesma foto e um singelo “Estaremos sempre com você, senhora”.
No jornal Daily Telegraph o título é “Devoção ao Dever, e o texto destaca as milhares de pessoas que estão enfrentando uma fila de 24 horas para homenagear a rainha Elizabeth. E menciona a celebridade David Beckham.
A imagem é a dos filhos diante do caixão. E a exemplos dos últimos dias, a parte inferior da capa traz outros assuntos que não são a morte da rainha.
Mas ela é tema de um especial de 76 páginas, destacado no alto da primeira página. Encartes volumosos estão sendo publicados todos os dias por vários jornais, fazendo a alegria da indústria editorial.
O jornal tabloide The Sun dedica toda a sua primeira página à imagem dos filhos da rainha Elizabeth em torno do caixão, com o título “Rei e país dizem adeus”.
No texto, uma referência à sorte que alguns súditos tiveram ao presenciar o exato momento em que a vigília dos filhos aconteceu.
E no alto, uma chamada para uma reportagem sobre os últimos dias da rainha em Balmoral.
O que aconteceu nesses dias e a causa da morte da rainha Elizabeth continuam um mistério – e assim como os demais jornais, o The Sun não trouxe nada para esclarecer.
A reportagem interna apresenta apenas um foto inédita, da rainha assistindo a uma banda de gaitas sob um gazebo. Segundo o jornal, a imagem foi feita por um convidado.
O texto é uma repetição de fatos já noticiados e fala de jantares ocorridos dias antes da morte, em que a monarca estava alegre e animada, porém com médicos de plantão.
O The Sun não não especula nem informa sobre a causa da morte, um segredo que continua guardado a sete chaves e que a mídia britânica não parece interessada em revelar enquanto em outros países versões diversas se proliferam.
A causa da morte do príncipe Philip, aos 99 anos, também não foi informada oficialmente, mas o atestado de óbito registrou “velhice”.
Leia também | Pesar ou marketing? 3 em cada 5 britânicos acham que tributos de marcas à rainha ‘não vêm do coração’