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‘Serial’: o podcast de jornalismo investigativo que ajudou a libertar um condenado à prisão perpétua nos EUA

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Reprodução

Londres – Na semana paassada, o podcast “Serial” levou ao ar o episódio “Adnan is Out”. Foi a coroação de um trabalho iniciado em 2014 que culminou com a anulação da condenação à prisão perpétua de um jovem muçulmano então com 17 anos pela morte de sua ex-namorada, ocorrida em 1999.

O jornalismo investigativo do podcast, pertencente desde 2020 ao The New York Times, chamou a atenção global para o caso e conseguiu provar uma série de inconsistências na condenação.

Os episódios sobre a saga de Adnan foram baixados mais de 300 milhões de vezes, quebrando recordes da categoria.

Podcast “Serial” foi o primeiro a lançar dúvidas sobre a condenação

Adnan, hoje com 41 anos, sempre alegou inocência e foi libertado na segunda (19).

Ele ficará em prisão domiciliar enquanto o caso é reavaliado. E se tornou mais um exemplo do sucesso dos podcasts investigativos, que têm ajudado a inocentar condenados injustamente e a punir culpados que tinham escapado da justiça.

Liderado pela jornalista Sarah Koenig, “Serial” teve até agora três temporadas e se tornou um dos podcasts mais populares do mundo.

Já ganhou quase todos os principais prêmios de jornalismo, incluindo o DuPont-Columbia, Scripps Howard, Edward R. Murrow e o Peabody, o primeiro concedido a um podcast. 

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Sarah Koenig (foto: WikiCommons)

Foi o podcast o primeiro a levantar, em 2014, dúvidas sobre a culpa de Adnan, condenado em 2000 por sequestro, roubo e cárcere privado e assassinato premeditado. Ele nunca admitiu ter cometido o crime.

Na época, os promotores argumentaram que Adnan era um amante desprezado que havia estrangulado Hae Min Lee, de 18 anos, sua ex-namorada e colega de classe na Woodlawn High School, em Baltimore. Na época de sua morte, Lee namorava havia 13 dias outro rapaz.

Ela foi vista pela última vez na tarde de 13 de janeiro de 1999. Ficou desaparecida por três semanas, até seu cadáver ser descoberto em 9 de fevereiro no Leakin Park e ser identificado dois dias depois.

No dia seguinte à identificação do corpo, uma fonte anônima informou às autoridades que Adnan teria cometido o crime.

Ele foi preso em 28 de fevereiro, depois que os investigadores vasculharam os registros de seu celular e descobriram ligações para Jennifer, amiga de Jay, um traficante de maconha conhecido do acusado.

Jay se tornaria testemunha-chave no processo ao dizer aos investigadores que Adnan lhe teria dito que matou a ex-namorada, além de tê-lo forçado a ajudar a enterrar o corpo dela.

Apesar de os detalhes da versão de Jay terem mudado de forma significativa ao longo de quatro depoimentos, os detetives disseram que conseguiram comprovar suas alegações usando registros de localização dos sinais de celulares.

O primeiro julgamento de Adnan terminou anulado, mas, após um segundo julgamento que durou seis semanas, ele foi condenado à prisão perpétua pelo assassinato de Lee em 25 de fevereiro de 2000.

No julgamento que selou a condenação, a promotoria o descreveu como um ex-namorado ciumento e violento, que matara brutalmente uma jovem brilhante e talentosa.

A defesa de Adnan descobriu que o promotor do caso conseguiu um advogado para Jay em troca de seu depoimento no julgamento e sua confissão de culpa como cúmplice do crime. Mas o juiz que presidia a sessão não concordou que isso seria suficiente para comprometer o testemunho de Jay.

Desde então, o condenado teve negados todos os recursos que apresentou nas duas últimas décadas. Até que sua sorte começou a mudar em 2014, e a partir de uma fonte inesperada – um podcast. 

Condenação de Adnan deu origem ao podcast de crimes reais “Serial”

A primeira temporada de “Serial” focou justamente no caso de Adnan Sayd.

O primeiro episódio foi ao ar em outubro de 2014, depois que a advogada Rabia Chaudry, amiga da família de Adnan, enviou um e-mail à jornalista Sarah Koenig pedindo que ela investigasse o caso.

Além do tremendo impacto que “Serial” teria no caso de Adnan e na própria exposição das falhas do sistema legal, o podcast inovou nas narrativas episódicas em áudio.

Criado e produzido por Koenig e Julie Snyder, “Serial” foi um subproduto de “This American Life”, contando a história de crimes verdadeiros ao longo de cada  temporada. Cada episódio tenta montar uma linha do tempo para checar o álibis e alegações de todos os envolvidos.

E não era só a história, mas também a discussão que provocava. O público devorava cada episódio e depois discutia seus desdobramentos online, com comentários sobre todos os aspectos do caso, alguns nem abordados pelo podcast.

A própria Chaudry, advogada que incentivou Koenig a investigar o caso, promovia a discussão de cada episódio em seu blog. Ela viria a escrever um livro e foi uma das produtoras de uma série da HBO sobre o caso. Intitulada “The case Against Adnan Syed”, a série foi apresentada em quatro capítulos em 2019.

A apresentadora Koenig diz que “Serial” é sobre temas básicos: amor, morte, justiça e verdade. A receita manteve os ouvintes ligados e baixando cada capítulo, inserindo “Serial” entre os fenômenos culturais do período, a ponto de Koenig ser incluída na lista de 2015 das pessoas mais influentes da revista Time.

Embora as duas temporadas subsequentes do programa tenham sido menos populares, Koenig e sua equipe são apontados como os que pavimentaram o caminho para o sucesso dos podcasts de jornalismo investigativo e estimularam a popularidade dos podcasts e o “boom” do gênero a partir da década passada 

O impacto dos podcasts sobre crimes reais

Na trilha aberta por “Serial” surgiram outros podcasts que chamaram atenção para casos já arquivados, fizeram rediscutir condenações de inocentes ou buscaram provas contra culpados que tinham conseguido escapar da mira dos investigadores.

Vários exemplos bem-sucedidos conquistaram grandes audiências mundo afora, e conseguiram impactar o curso da justiça.

Nos Estados Unidos, o podcast “In the Dark”, criado dois anos depois de “Serial”, chamou a atenção em sua segunda temporada para o caso de Curtis Flowers, um acusado negro julgado seis vezes no Mississipi pelo mesmo crime, pelo mesmo promotor branco.

Em 1996 ele foi acusado de matar a tiros quatro pessoas dentro da Tardy Furniture, uma loja de Winona, no Mississipi, onde ele havia trabalhado por alguns dias.

Depois de cumprir 23 anos de prisão, Flowers acabou tendo sua condenação anulada em 2019 pela Suprema Corte dos Estados Unidos por preconceito racial na seleção do júri. Ele foi retirado do corredor da morte e libertado sob fiança naquele ano. Em 2020, a Procuradoria Geral do Mississipi revisou o caso e arquivou a acusação.

No Reino Unido, o “The Doorstep Murder”, podcast da BBC lançado em 2018, se debruçou sobre o assassinato não resolvido de Alistair Wilson, pai de dois filhos que foi baleado na porta de sua casa na cidade litorânea de Nairn, na Escócia. Os culpados ainda não foram identificados.

Já na Austrália o podcast “The Teacher’s Pet”, lançado também em 2018 pelo jornal The Australian, foi decisivo para a condenação de Chris Dawson pelo assassinato de sua esposa.

Ele foi julgado culpado naquele mesmo ano, quatro décadas depois que sua mulher desapareceu sem deixar rastros, pois seu corpo nunca foi encontrado.

O podcast atraiu atenção global para o caso, apresentou evidências e fez com que a investigação fosse reaberta e o julgamento fosse realizado.

Novo julgamento decidirá o futuro de Adnan

A juíza do tribunal de Baltimore, Melissa Phinn, optou pela anulação da condenação de Adnan e estabeleceu um prazo para novo julgamento. Ela acatou um pedido dos promotores, além de considerar que a acusação não compartilhou as evidências obtidas durante a investigação com a defesa do acusado.

Os promotores informaram à juíza que passaram a não ter certeza da culpa de Adnan depois que uma revisão do caso realizada ao longo do último ano identificou dois novos suspeitos em potencial, que eram conhecidos da polícia desde a época do assassinato.

Nenhum dos novos suspeitos foi identificado, mas um deles tinha sido descartado durante a investigação com base num teste de detector de mentiras, método que não é mais aceito em muitos tribunais dos EUA.

A decisão judicial não declara Adnan inocente. Mas o fato de um condenado à prisão perpétua ser libertado da cadeia depois de 23 anos por dúvidas quanto à sua culpa alcançou repercussão global. Ele deverá permanecer em prisão domiciliar até a realização do novo julgamento ordenado pela juíza.

Inconsistências levantadas pelo podcast “Serial”

Ao longo do inquérito policial, o traficante Jay, que confessou cumplicidade no caso, disse que Adnan lhe telefonou marcando um encontro no estacionamento da loja Best Buy, quando teria lhe mostrado o corpo de Lee no porta-malas do seu carro.

A equipe do “Serial” mostrou que as evidências entre os registros de chamadas e dos registros de localização dos sinais de celular não condizem com o testemunho de Jay, no período da suposta saída de Lee da escola (às 14m15m) e o registro da chamada de Adnan para Jay (às 14h36m).

O podcast tentou entrevistar Jay, que se recusou a falar com o programa. Mas ao longo dos episódios da série, são mostradas outras evidências que põem em dúvida a culpa de Adnan.

Primeiro, a equipe apurou que um desenho feito por Jay para os investigadores não condiz com a realidade.

Ele disse aos detetives que encontrou Adnan de pé, usando luvas vermelhas, junto a uma cabine telefônica que posicionou em frente à Best Buy em seu desenho. Mas a equipe do “Serial” comprovou que nunca houve cabines telefônicas no local mencionado.

Em segundo lugar, uma das amigas de Lee, Summer, contou que teve uma conversa com a colega no período de 14h30m às 14h45m, o que derrubaria a versão de Jay sobre ter visto o corpo de Lee no porta-malas nesse intervalo. Outros colegas também afirmaram ter visto Lee nesse período na escola.

Por último, uma outra aluna da escola, Asia, disse ao podcast ter visto Adnan na biblioteca nesse mesmo período.

A influência do sentimento anti-muçulmano no resultado do julgamento também é examinada pelo podcast. Na época, a promotoria argumentou que a comunidade de Adnan o ajudaria a fugir para o Paquistão caso lhe fosse concedida a fiança, sugerindo que motivos religiosos teriam influenciado Adnan a matar Lee por ter tido sua “honra manchada” pela ex-namorada.

Episódio mais recente do podcast explica a reviravolta do caso

No episódio “Adnan is out”, o décimo-terceiro sobre o caso, o podcast relata que a revisão do caso foi solicitada pela defesa com base numa nova lei de Maryland, que se aplica a pessoas condenadas a mais de 20 anos de prisão por crimes cometidos quando eram menores de 18 anos, como é o caso de Adnan.

– “O caso de Adnan foi uma bagunça. É uma bagunça. É onde estávamos quando paramos de reportar em 2014”, diz a apresentadora Sarah Koenig no novo capítulo, referindo-se aos doze episódios anteriores, todos veiculados naquele ano.

Durante a revisão realizada ao longo do último ano, apurou o novo episódio do podcast, um funcionário da Procuradoria da cidade de Baltimore examinou os arquivos do caso e encontrou duas notas manuscritas relacionadas a informações telefônicas sobre um possível suspeito alternativo.

A comprovação da violação ao protocolo legal, configurada pelo não compartilhamento das notas contidas no inquérito com a equipe de defesa de Adnan, fez com que a Juíza decidisse pela anulação da condenação, apoiada pelo reconhecimento dos promotores de não estarem convencidos da culpa do acusado.

Durante a sessão que decidiu pela anulação, o irmão da vítima, Young Lee, disse em lágrimas que não era contra a investigação, mas que esperava uma definição sobre os culpados:

– “Todo dia quando penso que acabou, isso sempre volta. Este não é um podcast para mim. É a vida real, um pesadelo sem fim por mais de 20 anos”.

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