Londres – Um dos países com maior número de jovens acessando notícias por mídias sociais e mais afetados por fake news e discurso de ódio nas redes, o Brasil não poderia estar mais bem representado no grupo de Jovens Líderes para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

A ativista brasileira Luísa Franco Machado, de 23 anos, foi uma das 17 escolhidas entre mais de 5,7 mil candidatos de 190 países para trabalhar em prol dos pilares da ONU, como desenvolvimento sustentável, direitos humanos, paz e segurança. 

Ela defende o uso responsável da tecnologia e é ativista de direitos digitais e justiça de dados, uma questão relevante em todo o mundo e mais ainda no Brasil. 

Apesar da pouca idade, Luísa tem um currículo impressionante, “uma combinação de mais de cinco anos de estudos superiores e ativismo, focado na conexão entre tecnologia, feminismo e direitos Lgbt”, como ela descreve no vídeo de apresentação dos jovens líderes da ONU. 

Entre os Jovens Líderes para os ODS estão uma aspirante a astronauta, uma poeta e um medalhista paralímpico. Outros são artistas, empreendedores climáticos e inovadores em educação.

Em conversa com o MediaTalks, ela falou sobre os benefícios e malefícios das redes sociais, bem como as possíveis aplicações da inteligência artificial em políticas públicas.

Para o jornalismo, Luísa defendeu a ascensão de jovens lideranças para o comando de veículos tradicionais. Veja o que pensa a representante do Brasil no grupo da ONU.

O benefício das redes sociais

“A gente fala muito sobre como as redes sociais podem ser empoderadoras e dar uma voz para comunidades que não tinham. Agora, os valores e as necessidades dessas comunidades são difundidas para cada vez mais gente.

Eu fico pensando no TikTok, onde tem vários influencers, por exemplo, de comunidades indígenas na Amazônia, pessoas com deficiência e pessoas LGBT que fazem muito sucesso justamente por serem gente como a gente.

Esse é um passo importante que demos, só que agora falta dar o próximo passo que é pensar em quais ações concretas podem ser feitas a partir dessas vozes que vão fazer realmente diferença na vida dessas comunidades.”

Problemas por falta de regulação

“O grande mal das redes sociais é a falta de regulação. É algo que impacta muito todos nós como sociedade, mas também governos e reguladores. Uma grande parte da sociedade tem a tendência de colocar num pedestal os benefícios da era digital, da tecnologia, das redes sociais, enfim, da internet.

E quando a gente comenta sobre os lados negativos, a gente tende a individualizar a responsabilidade: é culpa dos pais, das crianças, de quem está postando muito sobre a vida.

Mas, na verdade, o certo seria a gente conseguir usar os benefícios das redes sociais, porém com um limite imposto para as empresas que coletam nossos dados.

Tem uma autora que fala do capitalismo de vigilância, Shoshana Zuboff. Estamos cada vez mais expostos a esse capitalismo de vigilância onde tudo que fazemos nas redes sociais é usado muitas vezes contra a gente pela própria plataforma por conta de como ela é construída.

Uma das maneiras mais efetivas de controlar isso é pela regulação efetiva baseada em evidências, onde os nossos dados não podem ser coletados de maneira ilimitada e guardados em day centers pelo mundo.”

Soluções coletivas

“Nossa sociedade tende muito ao individualismo, justamente por ser uma sociedade capitalista onde as respostas para os problemas sociais geralmente são empurradas para uma visão ideal de que a gente individualmente consegue resolver grandes problemas.

Não estou falando que não conseguimos, mas pra mim o caminho mais efetivo são soluções coletivas. E é onde vem esse trabalho individual de campo que é parte do que eu faço: conscientizar mais pessoas sobre os riscos dos algoritmos e do uso desenfreado da tecnologia sem uma regulação apropriada.

Isso é uma parte, mas idealmente a solução não vem de uma perspectiva individual do tipo ‘se você não quer ter os seus dados coletados, poste menos’. 

O ‘caminho para a solução’ — porque os problemas vão continuar a existir e vão ser criados novos problemas — é mais uma criação de uma consciência coletiva sobre o que é aceitável e o que não é.

Da mesma maneira que estamos criando uma consciência coletiva sobre, por exemplo, o clima, eu acho que também para o uso de dados e os direitos digitais é um caminho similar, de uma consciência individual para a tomada de decisão coletiva.”

Inteligência artificial para políticas públicas

“Comecei a me interessar por inteligência artificial durante a minha graduação em Ciência Política e Estudos Latino-americanos. Na verdade, comecei a me interessar por tecnologia e redes sociais durante as eleições presidenciais de 2018. 

Foi quando eu comecei a prestar mais atenção no impacto da tecnologia em pessoas que tecnicamente só a consomem. Mas é um ciclo: consumimos tecnologia e os nossos dados são coletados, manipulados e usados para fins que talvez a gente nunca imaginou e não deu a nossa autorização.

Eu fiz a minha tese de graduação sobre o uso da inteligência artificial e do big data por instituições públicas na América Latina. A partir de estudos de caso do Uruguai, Colômbia e Argentina procurei entender como que os dados públicos se relacionam com a tecnologia e como isso afeta a população.

Descobri que a inteligência artificial e o big data estavam sendo usados para violar os direitos humanos por um governo municipal da Argentina. Usaram a inteligência artificial para tentar estimar quais garotas entre 9 e 18 anos poderiam ter uma gravidez na adolescência. A estimativa era feita usando dados públicos como a idade da mãe, por exemplo.

A ideia pode ser vendida como algo bom para prevenir a gravidez na adolescência. Só que, na prática, é algo assustador porque pensamos ‘quem tem acesso a esses dados?’. 

São várias brechas que são impensáveis, mas que estão sendo implementadas por governos latino-americanos e do mundo inteiro com essa ideia de que a tecnologia é algo bom e temos que confiar.”

Possibilidades de uso das IAs

“Para melhorar a situação dos direitos humanos, temos que reconhecer a inteligência artificial como o nome dela propõe: uma inteligência que vai além do que humanos podem fazer, seja em termos de capacidade, produção ou velocidade.

Uma vez que a gente entende como usar isso para o bem da sociedade, é o que chamamos de tech for good, podem surgir caminhos para a solução de problemas que vem nos afetando a anos, décadas ou até séculos.

Eu nunca diria que a inteligência artificial ou a tecnologia são soluções para algum problema. São meios de solucionar. Sendo assim, tem muitas possibilidades de usar inteligência artificial para resolver problemas que afetam a população e principalmente comunidades mais vulneráveis.

Tem diversos projetos de usar a inteligência artificial, por exemplo, para prevenir, mitigar ou remediar desastres climáticos. É possível usar softwares em que a IA detecte qual área tem mais chance de ser afetada por furacões ou tempestades.

Tem projetos que usam inteligência artificial pra detectar mais facilmente abuso ou violência doméstica dependendo de como as mulheres buscam ajuda, que tipo de palavras elas usam, o tom da voz, etc.

Não podemos pensar que a IA é um monstro. É muito mais sobre como a gente usa, mas também sobre como isso é regulado e quem está construindo esses projetos.

Afinal, quem constrói esses projetos e quem está lá codificando os softwares coloca os seus próprios vieses. Por isso é importante termos mais diversidade nas pessoas que estão por trás dessa codificação.

Agora, só temos homens cis brancos entre 24 e 35 anos construindo softwares que vão afetar muitas pessoas. Vemos problemas de racismo, por exemplo, em softwares de reconhecimento facial.

Por isso, precisamos de uma diversidade muito maior em quem está construindo esses softwares para a gente mitigar os riscos de preconceito e opressão vindo dos próprios algoritmos.”

Jovens na liderança de redações

“Tem pontos positivos do jornalismo tradicional que a gente tem que manter. Mas querendo ou não, é muito difícil o jornalismo tradicional conseguir se adaptar às vontades e as requisições dos jovens de hoje sem que tenham uma transformação interna em quem comanda grandes jornais e grandes revistas.

Não adianta só contratar um estagiário para fazer as mídias sociais e achar que o problema vai estar resolvido. Muito pelo contrário.

O jornal que vai conseguir se adaptar será aquele que conseguir entender e aceitar que está na hora de colocar jovens em posições de liderança em grandes editoriais. Jovens que tenham poder de decisão e de encaminhar um jornal ou revista para um caminho diferente.

Será daí que virá a transformação. Quando os jornais conseguirem sair um pouco do pedestal e reconhecer que está na hora de trocar quem está liderando e trazer outras pessoas para essas lideranças, pessoas jovens que antes eram consideradas como menos experientes e realmente talvez até sejam em alguns temas.

Mas é por isso que tem o aprendizado compartilhado, tem muitas estratégias para chegarmos lá. Mas falo isso com muita certeza: está na hora da gente colocar jovens liderando grandes decisões e grandes veículos, inclusive os jornais tradicionais.”

Regulação não significa censura

“A regulação [das redes sociais] não seria para dar mais poder de censura para as plataformas, que já têm os seus próprios guidelines, ou seja, eles já estão decidindo o que vai ser tirado e o que vai ser deixado lá.

A regulação vem justamente para garantir que quem está construindo essas community guidelines não sejam somente as pessoas que trabalham na plataforma, os administradores da Meta, Twitter ou TikTok, por exemplo, mas que a população também possa intervir.

Quando falamos da regulação das guidelines, falamos de um processo multiple stakeholder onde são chamadas pessoas da sociedade civil, reguladores, comunidade internacional, enfim, uma grande variedade de vozes para contribuir com esse debate.

O caminho é esse, que mais vozes possam decidir democraticamente o que deve ou não ficar nas redes sociais. Ao invés de decisões individuais muitas vezes baseadas em conexões políticas serem tomadas pelas próprias plataformas sem que os usuários possam intervir e sem que tenha um órgão regulador.”