Londres – Bem antes de o presidente americano Joe Biden assustar o mundo na última quinta-feira afirmando que a ameaça nuclear russa coloca o planeta sob  risco de apocalipse, os cientistas que anualmente marcam no Relógio do Juízo Final o tempo que falta para a destruição da humanidade já tinham alertado sobre o risco. 

Em janeiro, quando o painel do Doomsday Clock anunciou que faltavam 100 minutos para a meia-noite, a guerra não tinha ainda começado mas os cientistas destacaram a Ucrânia como um “um potencial ponto de inflamação, com o envio de tropas russas para a fronteira ucraniana aumentando as tensões”.

Logo após a invasão, os cientistas emitiram uma nota reiterando a probabilidade do uso de armas nucleares na região. Eles classificaram o momento como “perigoso, fluido e instável”, utilizando a metáfora do relógio que torna mais compreensível para o público o entendimento das ameaças. 

Guerra nuclear motivou criação do Relógio do Juízo Final 

Criado em 1945 por Albert Einstein e cientistas da Universidade de Chicago que ajudaram a desenvolver as primeiras armas atômicas no Projeto Manhattan, o Bulletin of the Atomic Scientists (Boletim de Cientistas Nucleares) estabeleceu o Doomsday Clock dois anos depois, usando as imagens do apocalipse (meia-noite) e o idioma contemporâneo da explosão nuclear (contagem regressiva para zero) para simbolizar as ameaças à humanidade e ao planeta.

O horário do Relógio do Juízo Final é definido todos os anos pelo Conselho de Ciência e Segurança, um grupo de especialistas que inclui 11 ganhadores do Prêmio Nobel. 

O Doomsday Clock tornou-se um elemento da cultura pop e um indicador universalmente reconhecido da vulnerabilidade do mundo diante das mudanças climáticas, de tecnologias disruptivas e do que os autores chamam de “catástrofe de armas nucleares”. 

Esse risco voltou a assombrar o mundo depois da declaração de Joe Biden e da destruição da ponte entre a Rússia e a Crimeia, provocando temor de que Vladimir Putin reaja com armas nucleares.

Veja o que disseram os cientistas sobre os riscos. 

Hora do juízo final mais próxima por tendências 

O Boletim deste ano, publicado antes de que sinais mais concretos da invasão estiverem à vista, dizia que a mudança no comando dos EUA em 2020, com a saída de Donald Trump, deu esperança de que o que parecia uma corrida global em direção à catástrofe pudesse ser interrompida e até revertida: 

“De fato, em 2021, o novo governo americano mudou algumas políticas que tornaram o mundo mais seguro: concordou com uma extensão do novo acordo de controle de armas START, iniciou negociações de estabilidade estratégica com a Rússia; anunciou a tentativa de retornar ao acordo nuclear com o Irã; e reintegrou-se ao acordo climático de Paris. 

[…] Uma abordagem mais moderada e previsível à liderança e ao controle de um dos dois maiores arsenais nucleares do mundo marcou uma mudança bem-vinda em relação aos quatro anos anteriores.”

No entanto, o painel do Relógio do Juízo Final julgou que isso não foi suficiente para equilibrar “as tendências negativas de segurança internacional que demoravam a se desenvolver e continuaram ao longo do horizonte de ameaças em 2021”.

E a Rússia fazia parte do roteiro. 

As relações dos EUA com a Rússia e a China permanecem tensas, com os três países envolvidos em uma série de esforços de modernização e expansão nuclear – incluindo o aparente programa de larga escala da China para aumentar sua implantação de mísseis nucleares de longo alcance baseados em silos; a pressão da Rússia, China e Estados Unidos para desenvolver mísseis hipersônicos; e o teste contínuo de armas anti-satélite por muitas nações. 

Os cientistas afirmaram que se esses movimentos não fossem contidos o mundo poderia entrar em uma “nova e perigosa corrida armamentista nuclear”, como a que muitos temem agora. 

A ‘corda bamba nuclear’ do Relógio do Juízo Final 

O capítulo do Boletim de 2022 que explica os riscos atômicos ganhou o nome de “a corda bamba nuclear”.

Para os cientistas, durante o ano de 2021, alguns riscos nucleares diminuíram, enquanto outros aumentaram. “E as próximas decisões sobre políticas nucleares podem gerar modificações salutares ou perigosas de uma situação de segurança já incerta e preocupante”, escreveram. 

Um dos pontos positivos destacados foi justamente um acordo firmado em fevereiro do ano passado entre os Estados Unidos e a Rússia de Vladimir Putin para renovar o programa New START. 

“Essa extensão cria uma janela de oportunidade para negociar um futuro acordo de controle de armas entre os dois países que possuem 90% das armas nucleares do planeta. 

Os Estados Unidos e a Rússia também concordaram em iniciar dois conjuntos de diálogos sobre a melhor forma de manter a “estabilidade nuclear” no futuro: o Grupo de Trabalho sobre Princípios e Objetivos para o Controle de Armas Futuro e o Grupo de Trabalho sobre Capacidades e Ações com Efeitos Estratégicos. 

Esses grupos se reuniram [em 2021] e no início de 2022 devem relatar os resultados iniciais das consultas, com o objetivo de moldar futuros acordos de controle de armas.”

A previsão feita em janeiro não se confirmou, com a possibilidade de um ataque nuclear no conflito entre a Rússia e a Ucrânia sendo seriamente considerada. 

A Rússia também foi destacada na análise dos cientistas, ao lado da China, pelos testes com armas anti-satélites: 

“Os chineses começaram a construir novos silos de ICBM em larga escala, levando a preocupações de que a China possa estar considerando uma mudança em sua doutrina nuclear. 

A China e a Rússia testaram armas anti-satélite recentemente, aumentando as preocupações sobre a rápida escalada em qualquer conflito convencional com os Estados Unidos. 

Os esforços dos três países para lançar mísseis hipersônicos estão começando a produzir resultados, intensificando a competição. Embora não haja consenso tanto das causas quanto das consequências desses programas, eles marcam claramente o início de uma nova competição de armas.”

Os riscos nucleares em relação à Coreia do Norte foram igualmente apontados pelos cientistas. 

“Embora nenhuma conversa entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos tenha ocorrido em 2021, os norte-coreanos não retomaram os testes de armas nucleares ou mísseis balísticos intercontinentais de longo alcance (ICBMs), mas os testes de mísseis de curto alcance continuaram.”

O boletim afirma que os norte-coreanos continuam a testar mísseis de curto e médio alcance com capacidade nuclear, incluindo veículos de cruzeiro, balísticos e planadores, e que há evidências de que estão reiniciando a produção de plutônio. 

E registra que  Índia e Paquistão continuam a avançar em suas capacidades nucleares, de mísseis e outras capacidades militares “sem diminuição de possíveis pontos de inflamação que possam levar a um conflito nuclear”.

Possibilidade “assustadora” de armas nucleares no Oriente Médio

O Irã foi classificado como “o lado negativo” do ano no relatório que serviu para definir a hora do relógio do juízo final em 2022. 

O Irã continua a construir um estoque de urânio enriquecido, insistindo que todas as sanções sejam removidas antes de retornar às negociações com os Estados Unidos.

 A janela de oportunidade parece estar se fechando. Com o tempo, os vizinhos do Irã, principalmente a Arábia Saudita, podem se sentir compelidos a adquirir capacidades semelhantes, prenunciando a possibilidade assustadora de um Oriente Médio com vários países com experiência e material para construir armas nucleares.”

O governo de Joe Biden foi elogiado por ter anunciado que um objetivo específico do processo de Revisão da Postura Nuclear (NPR), seria “reduzir o papel das armas nucleares” na política de segurança nacional dos EUA.

“Como demonstrou a insurreição de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio dos EUA, nenhum país está imune a ameaças à sua democracia e, em um estado com material utilizável em armas nucleares e armas nucleares, ambos podem ser alvos de terroristas e fanáticos. 

Os invasores chegaram perto de capturar o vice-presidente Mike Pence e o “comando nuclear” que acompanha o vice-presidente como sistema de backup para autorizar lançamentos nucleares.”

Os cientistas do Doomsday Clock disseram em janeiro esperar que a redução do papel das armas nucleares nas políticas de dissuasão e defesa dos EUA afetasse positivamente as posturas de armas nucleares de outros países, tornando o mundo mais seguro. 

Mas ainda assim, as previsões não eram otimistas, levando o Relógio do Juízo Final a continuar marcando os mesmos 100 segundos para a meia-noite, o ponto mais próximo que já esteve do “apocalipse do fim da civilização, porque o mundo permanece preso em um momento extremamente perigoso”: 

“Em 2019, chamamos isso de novo anormal e, infelizmente, persistiu.”

No dia 27 de março,  a presidente do conselho, Rachel Bronson, assinou um manifesto em nome dos cientistas condenando a invasão da Ucrânia pela Rússia:

“Reiteramos a situação precária na Ucrânia. 

Também relatamos repetidamente sobre os perigos de escaladas não intencionais à medida que posturas e investimentos militares, juntamente com declarações políticas, aumentam a probabilidade de que armas nucleares possam ser usadas. 

Isso é exatamente o que 100 segundos para a meia-noite transmite. É perigoso, fluido e instável.”