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Relatório de ONG britânica analisa conduta da mídia em atentados como massacres em escolas

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Foto: Jordan Witt/Unsplash

Londres –  A conduta do jornalismo em situações que envolvam vítimas de terrorismo e suas famílias foi mais uma vez objeto de críticas no massacre que vitimou 38 pessoas em uma creche na Tailândia na semana passada.

Uma equipe da CNN foi criticada por entrar no local sem autorização e exibir imagens gráficas da cena do crime, colocando em questão os limites entre informar e ferir sensibilidades.

Para ajudar jornalistas a se colocarem no lugar de sobreviventes ou parentes das vítimas, a organização britânica Survivors Against Terror (SAT) fez um relatório para orientar a mídia sobre como cobrir esses acontecmentos sem desrespeitar os atingidos por atentados ou grandes catástrofes. 

Massacre da Tailândia repete sofrimento de outros atentados

O desrespeito a vítimas pode ser proposital, como no caso do teórico da conspiração Alex Jones, condenado esta semana a pagar mais de R$ 5 bilhões em indenizações a famílias de vítimas do tiroteio da escola Sandy Hook. 

Ele afirmou várias vezes em seu programa de rádio que o massacre havia sido encenado com atores, e que as mortes não tinham acontecido. As famílias sofreram assédio de seguidores de Jones. 

Na maioria dos casos, porém, decisões de profisisonais de imprensa que machucam ainda mais os que já sofrem ou desrespeitam a memória das vítimas é involuntário, e é isso que a presquisa da SAT quis apontar. 

O trabalho é resultado de entrevistas em profundidade feitas pela empresa de pesquisas Kantar com feridos em ataques terroristas, testemunhas, parentes de vítimas fatais e de pessoas atingidas.

O relatório ajuda a pensar nos limites entre informar o público e ferir sentimentos de vítimas ou parentes de quem perdeu a vida.

Uma reflexão que repórteres e editores fazem diariamente ao tomar decisões sobre como abordar tragédias, mas que por vezes podem deixar de olhar todos os lados da questão na correria do fechamento das edições.

Foi o caso da CNN, que mesmo se desculpando pela cobertura do massacre e retirando a reportagem do ar, foi criticada em todo o mundo e ainda teve que se explicar por ter uma equipe atuando na Taiândia sem visto de trabalho.

Embora o foco do relatório seja em terrorismo, as sensações compartilhadas pelos entrevistados podem ser aplicadas também a acidentes comuns ou violência urbana.

O nome é sugestivo: A Second Trauma (Um Segundo Trauma), tratando do que a organização classifica como “intrusão da mídia”.

Os participantes nas entrevistas foram selecionados entre pessoas envolvidas em atentados no Reino Unido, como os da Manchester Arena e da London Bridge, no ataque à sala de concertos Bataclan em Paris e em atos terroristas em Tunísia, Bali e Bruxelas.

No relatório, o SAT diz reconhecer o papel vital que a imprensa desempenha em manter o público informado sobre o terrorismo e seus impactos. Mas aponta que 59% dos sobreviventes disseram ter sofrido intrusão, importunação, pressão, deturpação e invasão de privacidade.

Quase a metade dos casos aconteceu nas primeiras 24 após o atentado, das mais variadas formas, como abordagem em perfis de redes sociais, na porta de casa, por meio de parentes e até dentro do hospital.

Houve relatos de crianças informadas por jornalistas que familiares foram mortos antes que os pais dessem a notícia. Ou repórteres avisarem equivocadamente a parentes que seus entes queridos estavam vivos.

Desconforto geral 

E em um país conhecido pela agressividade dos tabloides, as críticas não foram somente a eles. Segundo o SAT, o problema é “endêmico”, envolvendo quase todos os jornais e TVs, até a sóbria BBC.

Um participante disse que “o pior eram os freelances”, ávidos por emplacar pautas em grandes jornais e até fingindo trabalhar para eles para arrancar declarações.

Ao descreverem o impacto do assédio, os entrevistados usaram palavras pesadas: assustado, ansioso, furioso, aterrorizado, oprimido, intimidado, traído, vitimizado.

A condenação não é geral: 52% deles relataram experiências positivas com a imprensa. Mas a reprovação é muito alta.

Incentivo a massacres como os da Tailândia 

O estudo mostrou ainda que muitos veem com preocupação a forma como o jornalismo cobre os atentados, não apenas pelo impacto pessoal mas também pelos efeitos sobre o crescimento do terrorismo.

Cerca de 90% dos sobreviventes discordam da veiculação de nomes dos terroristas. Mais de 80% dizem que vídeos feitos por eles não deve ser exibidos, mesmo parcialmente. E 98% concordam que “manifestos” não devem ser tornados públicos.

O relatório apresenta seis recomendações, incluindo um acordo voluntário para não contatar os enlutados e gravemente feridos pelo menos nas primeiras 48 horas após um ataque. Propõe que fotos de pessoas enlutadas ou feridas não sejam usadas sem permissão de parentes.

Pede a criação de um “centro de apoio aos sobreviventes” e de um sistema para confirmar fatalidades para a mídia apenas depois que as famílias forem informadas. E sugere que os veículos que não sigam as regras sejam banidos de coletivas.

O SAT finaliza com uma mensagem de alerta para os jornalistas e veículos que cobrem ataques terroristas:

“Claro que existe um legítimo interesse público em tais ataques, mas isso não significa que os sobreviventes devam ser tratados como alimento para jornalistas famintos por notícias.

As medidas foram apresentadas aos órgãos que regulam a imprensa britânica, e algumas podem até ser incorporadas à prática jornalística.

Mesmo que não sejam, o relatório tem o valor de chamar a atenção para algo que nem sempre é percebido na correria da reportagem ou do fechamento das edições.

Mas o tratamento nem sempre justo com quem sofre, sem compaixão ou empatia, não acontece apenas em grandes eventos midiáticos como atentadios, quedas de avião, catástrofes naturais ou morte de personalidades.

Neles, é comum haver mais debate interno nas redações que praticam jornalismo responsável para avaliar ângulos ou a propriedade de dar uma foto ou forçar uma declaração.

O perigo maior pode estar na cobertura de acidentes ou da violência urbana, com pessoas não tão famosas como as vítimas de grandes atentados como o massacre da Tailândia, mas que sofrem da mesma forma com um tratamento pouco humano da imprensa.

E em veículos de imprensa menos responsáveis ou canais independentes como blogs, que podem não levar em conta o mal causado a uma vítima ou familiar ao expor sua dor.

O relatório completo pode ser visto aqui.

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