Londres – Mestre de gerações que passaram pela Universidade Federal Fluminense e pelo Jornal do Brasil nos anos 70 e 80, e nas duas últimas décadas pelo Knight Center para o Jornalismo nas Américas, o brasileiro Rosental Calmon Alves elegeu as mudanças climáticas como uma de suas prioridades na instituição que dirige.

E não é só por preocupação com o planeta. Para o jornalista e professor da Universidade do Texas em Austin, que fundou o Knight há vinte anos, o jornalismo ambiental oferece oportunidades de negócios para a indústria jornalística, castigada pela concorrência das gigantes digitais.

Em conversa com o MediaTalks no último dia da COP27, ele recordou uma história que ilustra a mudança da postura da mídia em relação ao clima.

Nos anos 80, ao entrevistar com o jornalista Kiko Brito o então editor-chefe do Washington Post, Bem Bradlee, que viajaria à Amazônia, ouviu dele:

“Não posso acreditar que o desodorante que uso debaixo do braço aumente o buraco da camada de ozônio”.

Pode ter sido coincidência, mas tempos depois, no dia seguinte à saída do “cético ambiental” do jornal, o Post destacou na capa os riscos do CFC para o meio ambiente.

 “Pareciam que estavam esperando ele ir embora”, diverte-se Rosental. E a substância logo viria a ser banida graças à comprovação dos riscos.

Isso não significa que o negacionismo tenha acabado, como lembra ele, preocupado com o ‘efeito Trump’ na desinformação climática.

“Dentre todas as mentiras que Trump disse, as relacionadas com a crise ambiental foram gritantes.”

Para neutralizar esse efeito, Rosental diz que é preciso investimento e capacitação.

Confira as principais lições que ele destaca para uma cobertura adequada das mudanças climáticas, algumas delas tiradas da pandemia e até das telas do cinema.

Rosental Alves Knight Center COP27

Don’t Look Up

“A melhor analogia para retratar este momento é o filme ‘Don’t Look Up’, que mostra uma imprensa insensível ao fim do mundo iminente e lembra coisas importantes ao jornalismo”.

Polêmica científica e ‘bothsiderism’

“Uma delas é que passamos da era da polêmica científica. A crise climática vai além de qualquer controvérsia. É um tema notório, e é bom que as redações estejam revendo suas prioridades, porque há uma década houve um declínio.

Muitas pararam de cobrir mudanças climáticas ou se prenderam ao ‘bothsiderism’, ouvindo o ‘outro lado’ como se fossem dois lados equivalentes”.

Tema complexo em meio à tempestade perfeita

“Outra coisa importante é reconhecer a complexidade do tema. É um jornalismo que demanda especialização, mais caro. E isso torna o contexto ainda mais complicado, porque estamos na tempestade perfeita.

Empresas jornalísticas enfrentam uma crise financeira e estrutural. Elas estavam acostumadas com crises cíclicas, mas essa veio para ficar”.

Engajamento

“Toda crise oferece oportunidades. Uma cobertura eficiente e brilhante das mudanças climáticas é uma oportunidade de se conectar com o público, gerando o engajamento que o jornalismo tanto precisa”.

Exemplo do mundo corporativo

“É necessário capacitação, não só de repórteres, mas também de editores, para entender o que muitas corporações já entenderam. Por exemplo: quando você compra uma passagem aérea, as companhias falam da pegada de carbono e como neutralizar”.

“As empresas de tecnologia também fazem isso. Ser negligente na cobertura dessa crise significa não apenas perder uma oportunidade, mas ficar para trás. É preciso despertar para esse problema planetário”.

Jornalismo crítico e não omisso

“O bom jornalista é o que desconfia. O ceticismo está em nosso DNA. É preciso ver com desconfiança mensagens sobre cuidados com o planeta.

Mas uma coisa é desconfiar e cobrir de maneira crítica. Outra é ignorar o tema por achá-lo complexo”.

Problemas e soluções

“A cobertura ambiental dos anos 70 e 80 foi muito importante, mas inspira um outro aspecto que deve ser observado agora. O jornalismo não pode falar apenas sobre os problemas trazidos pelas mudanças climáticas, mas também sobre as soluções para enfrentá-los”.

“Os cursos do Knight Center têm muito foco nisso, em um momento em que as evidências são abundantes. Também é valioso retratar a situação de setores prósperos como o de energias renováveis. É fundamental fazer um jornalismo que seja propositivo, além de informativo”.

Editorias, verticais e eventos

“Estamos saindo de um governo marcado pelo negacionismo ambiental.

É hora de se criar mais cobertura sobre mudanças climáticas e aproveitar oportunidades de negócio. Setores como o de energias limpas estão crescendo rapidamente, movimentam muito dinheiro e investimentos”.

“É um bom campo para criar editorias e verticais. Outra área promissora que vemos aqui é a de eventos, vitais para a diversificação que a indústria jornalística precisou fazer depois do impacto das empresas de tecnologia”.

Lições da pandemia para o jornalismo

“Assim que a pandemia foi decretada, conversei com o brasileiro Guilherme Canela, da Unesco, sobre como ajudar jornalistas a cobrirem o tema. Em menos de um mês anunciamos um curso que atingiu 9 mil pessoas em 170 países, em quatro idiomas”.

Depois fizemos outros, além de webinars. Tivemos ali a seguinte lição: é complexo cobrir algo que não é conhecido.

Estamos acostumados a coletivas em que se anuncia algo que aconteceu. Mas a pandemia mostrou para milhares de jornalistas que não havia respostas. E de repente, todos eram jornalistas de ciência”.

A maratona da covid

“A pandemia se espalhava com rapidez que nunca tínhamos visto em nossa geração, e a ciência ia evoluindo junto.

Foi como uma maratona, em que alguns entravam e caiam pelo caminho, outros se levantavam e corriam, e a gente ia enfrentando os negacionistas que dizem que a vacina fazia virar jacaré ou que a covid era uma gripezinha”.

Mudança climática, a ‘nova pandemia’

“Esse padrão da cobertura inicial da pandemia durou meses, mas com as mudanças climáticas vai perdurar por anos ou décadas. A ciência não tem todas as respostas e os jornalistas precisam compreender como ela funciona”.

“A pandemia foi uma espécie de ‘ensaio concentrado’ da abordagem adequada para acompanhar uma crise que não vai ser tão rápida, com data para acabar com uma pandemia”.

Todos vão virar jornalistas de ciência

“As escolas de comunicação devem incorporar aulas de jornalismo ambiental ou de jornalismo científico.

Tomando como exemplo a pandemia, o jornalismo ambiental é muito sério para ficar restrito a jornalistas especializados.

Nunca se sabe em que momento um jornalista vai ter que lidar com temas científicos, seja ela da editoria economia, esportes ou cidades”.


“Não é bobagem escrever sobre esperança”, defende instrutor de curso de jornalismo ambiental do Knight Center

Entre os cursos recentes do Knight Center está um treinamento trilíngue, gratuito e online sobre a cobertura das mudanças climáticas e combate à desinformação, que contabiliza quase 4 mil participantes desde o lançamento.

O instrutor é John Schwartz, jornalista científico que trabalhou no The New York Times e é professor de jornalismo na Escola de Jornalismo e Mídia da Universidade do Texas.

John Schwartz / Reprodução

Ele ensina que não se deve apenas condenar o futuro, criando pânico e uma sensação de impotência. E que “não é bobagem escrever sobre esperança”.

O curso reúne conversas de Schwartz com nomes como o cientista climático Kerry Emanual, o pesquisador Anthony Leiserowitz, a repórter científica Maggie Astor, o comunicador científico climático John Cook, e os repórteres especializados em meio ambiente Jesus Jiménez e Cara Buckley.

Os interessados podem acompanhar as aulas na plataforma de cursos autodirigidos do Knight Center.

No final de 2021, a instituição também ofereceu o treinamento Jornalismo científico: da pandemia à crise climática, como melhorar a cobertura da ciência, em português, útil para quem quer se aprimorar no acompanhamento de questões relacionadas ao tema.


Esta entrevista faz parte do MediaTalks Especial  COP27