Londres – No mais recente episódio de censura à imprensa na guerra da Ucrânia, Matilde Kimer, jornalista da rede pública dinamarquesa DR, teve sua credencial para reportagens na linha de frente do conflito cassada pelo Serviço de Segurança ucraniano por ser “tendenciosa, fazer propaganda da Rússia e violar regras de viagem”.

Experiente repórter, Kimer trabalha para a DR desde 2009 cobrindo a Ucrânia e a Rússia, que em agosto a proibiu de entrar no país por 10 anos. Ela foi indicada ao prêmio de jornalismo Cavling, o mais importante da Dinamarca, por seu trabalho na guerra, e já recebeu diversas homenagens por seu trabalho. 

A suspensão da credencial da jornalista foi anunciada pela DR, depois de meses tentando sem sucesso reverter a medida.

Funcionários do serviço de segurança ucraniano, responsável pela revogação da credencial, chegaram a sugerir que ela produzisse “boas matérias” como condição para ser novamente credenciada. 

Em entrevista ao jornal Politiken, o embaixador ucraniano na Dinamarca, Vydoinyk Mykhailo, disse que Kimer estava sendo “manipuladora”, já que ela continua autorizada a trabalhar na Ucrânia, fora de zonas de guerra.

O problema é que praticamente todo o país virou área de guerra, o que na prática impede o trabalho da jornalista. 

Jornalistas censurados pela Ucrânia 

Embora a imprensa global seja de longe mais favorável ao país invadido do que à Rússia, esta não é a primeira reação da Ucrânia contra a imprensa.

Equipes da Sky News e da CNN que transmitiram ao vivo a retomada da cidade de Kherson tiveram suas credenciais suspensas. 

Mas o caso de Matilde Kimer não foi relacionado a uma cobertura ou reportagem em particular.

Ela vivia na Rússia desde 2020, e até suas ligações telefônicas para o país a partir da Ucrânia  foram citadas pelos funcionários do serviço de segurança, o SBU, como supostas evidências de suas ligações com o governo russo. 

A pressão sobre a jornalista começou no dia 22 de agosto, quando Kimer recebeu um e-mail do órgão informando que seu credenciamento de imprensa para áreas de guerra  havia sido revogado. 

Em entrevista à Jornalisten, revista da União Dinamarquesa de Jornalistas, ela disse ter achado que seria um mal-entendido, e passou um mês tentando falar com as autoridades de segurança para esclarecer a situação. 

Autoridades dinamarquesas entraram no caso e um pequeno avanço ocorreu, mas as reuniões foram adiadas devido aos bombardeios na Ucrânia. 

Em 8 de dezembro, veio a posição definitiva. Em uma reunião organizada com ajuda do Ministério dos Negócios Estrangeiros dinamarquês no gabinete do serviço de segurança em Kiev, Matilde Kimer foi informada de que não se tratou de um erro.

Para o SBU, ela seria tendenciosa, engajada na propaganda russa e talvez até estivesse “trabalhando para o inimigo”. 

Segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ), um representante da SBU chamado Oleg disse a ela que algumas de suas postagens pessoais nas mídias sociais, incluindo uma no Facebook de maio de 2017, com fotos de um desfile militar na autodeclarada República Popular de Donetsk (DPR) mostrava faixas soviéticas, entendidas como “propaganda soviética ilegal”. Isso levantou suspeitas de que ela era “tendenciosa”.

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Oleg também disse a Kimer que ela não poderia ter feito entrevistas com funcionários da DPR a menos que estivesse “de alguma forma envolvida com eles”.

A jornalista e a emissora refutaram as alegações e tornaram o caso público. A diretora de jornalismo da DR, Sandy French, considera a acusação contra Matilde Kimer infundada e injusta: 

“Ninguém fez uma cobertura mais justa e sóbria da guerra na Ucrânia do que ela, que já foi reconhecida e premiada em diversas ocasiões.”

Ao CPJ, Kimer relatou que um funcionário ucraniano sugeriu que ela produzisse “boas matérias” sobre a Ucrânia para recuperar a credencial, o que ela recusou: 

“Eu disse a ele: ‘Muito obrigado por essa oferta, mas como jornalista independente, não posso publicar matérias sobre algo que não testemunhei, sobre pessoas com quem não falei. Isso não é jornalismo’.

Então a reunião terminou.”

Ela criticou a liberdade de imprensa na Ucrânia, destacando a distância entre os padrões dinamarqueses e os do serviço de segurança ucraniano. 

‘Prática indigna de país democrático’

“As autoridades ucranianas devem restabelecer o credenciamento de imprensa de Matilde Kimer imediatamente e permitir que ela continue cobrindo a guerra na Ucrânia”, disse Gypsy Guillén Kaiser, diretor de defesa e comunicações do CPJ.

“A mídia independente é vital para a cobertura do conflito. Revogar o credenciamento ou solicitar uma “boa” cobertura para restaurá-lo é uma prática indigna de um país democrático. As autoridades devem garantir que esse tipo de incidente não se repetida.”

Mas a Ucrânia não parece inclinada a rever sua posição.

O embaixador da Ucrânia na Dinamarca, Vydoinyk Mykhailo , que estava na reunião no SBU, negou em entrevista ao jornal Politiken a existência de pressão ou de limitação às atividades jornalísticas de Matilde Kilmer.

Ele afirmou país “quer apenas que os jornalistas cumpram as regras”. 

Mykhailo disse a Politiken que Kimer violou os regulamentos de viagem ucranianos três vezes, a primeira delas há sete anos.

Ele citou viagens supostamente não autorizadas à Crimeia ocupada pela Rússia em março de 2015, para Donbas em 2016-2017 e para a região de Mykolaiv, sul da Ucrânia, em julho de 2022.

Kimer disse que visitou a Crimeia antes que a Ucrânia adotasse novas regras para entrar na península e afirmou ao CPJ que não entrou em Donbas pela Rússia em 2016-2017.

Ela explicou que viajou para Mykolaiv sem a devida autorização porque não sabia que precisava, e que a situação foi rapidamente resolvida.

Mas o embaixador deixou a diplomacia de lado foi duro com a jornalista, chamando-a de manipuladora.

“A única coisa que aconteceu é que o Ministério da Defesa cancelou seu credenciamento militar, para que ela não pudesse ir para a linha de frente e fazer reportagens de lá. 

Mas ela pode facilmente trabalhar como jornalista na Ucrânia […]. Portanto, ela não foi excluída e, portanto, é manipulação dizer que foi.”.

Kimer discorda, lembrando que a Ucrânia está em estado de emergência militar: 

“As regras militares se aplicam a todo o país. Você não pode circular como estrangeiro sem mostrar que possui um credenciamento. Você não pode abordar uma autoridade. 

Também há muitas pessoas comuns que querem se certificar de que você tem um credenciamento e está aprovado para trabalhar.”

Embora tenha ajudado a organizar a reunião, o governo da Dinamarca trata o caso com cautela. À DR,  o novo Ministério das Relações Exteriores, Lars Løkke Rasmussen garante que seu antecessor fez tudo o que pôde resolver o caso, e prometeu continuar apoiando. 

“Nossa tarefa é enfatizar às autoridades ucranianas que prezamos muito a liberdade de imprensa.”

Rasmussen ponderou que a Ucrânia está em uma situação especial, mas ainda assim é importante que a imprensa livre trabalhe para que os dinamarqueses possam ter uma ideia do que está acontecendo na guerra. 

“Temos um jornalista cuja integridade jornalística, que eu saiba, não foi questionada. Então temos que esperar e acreditar isso que pode ser o suficiente para convencer as autoridades ucranianas.”

Jornalista privada de cobrir guerra da Ucrânia 

Em reportagem publicada pela DR, o chefe de relações exteriores Niels Kvale, lamentou que a profissional talentosa, que tem mais experiência em Ucrânia acumulada em 14 anos de trabalho no país e domine o idioma local, não possa continuar seu trabalho sem limitações. 

Tine Johansen, presidente da Associação de Jornalistas Dinamarqueses, classificou a revogação da credencial de Matilde Kimer de “ultrajante”. 

“Como comunidade mundial, precisamos ter olhos e ouvidos no chão. Precisamos de cobertura jornalística adequada do que está acontecendo nesses eventos históricos. 

É um revés para a liberdade de imprensa e para nosso direito de sermos informados que uma jornalista qualificada seja  rejeitado dessa forma.”

O Comitê de Proteção a Jornalistas disse ter enviado emails para o SBU, para o Ministério da Defesa da Ucrânia e para a embaixada da Ucrânia na Dinamarca, mas não recebeu nenhuma resposta.

Depois da reunião de Matilde Kimer com o serviço de segurança ucraniano, a rede DR entregou às autoridades um pendrive com 10 de suas reportagens feitas em 2022 e pediu-lhes que avaliassem se as consideravam tendenciosas. 

“Ainda acredito que DR tem esperança de que a razão prevalecerá e que conseguirei o credenciamento para poder voltar a trabalhar na Ucrânia e documentar esse conflito, que venho cobrindo desde 2014”, disse Matilde Kimer à revista da União de Jornalistas.