Londres – Jacinda Ardern, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, virou uma queridinha global, elogiada pela condução da crise da Covid, pela resposta ao massacre de Christchurch e pela coragem de dar à luz enquanto estava no cargo, retratada pela mídia como exemplo para mulheres no mundo do trabalho.
Mas a chamada Jacindamania cobrou seu preço, como cobra de tantas mulheres em posições de destaque: ao anunciar a renúncia, há duas semanas, ela disse “não ter mais combustível”.
Ardern não detalhou o que esvaziou o tanque. Houve especulações sobre queda de popularidade e risco de uma derrota eleitoral.
Embora consagrada no mundo como uma líder carismática, eficiente e humana, ela perdeu apoio em casa principalmente pelas política restritiva imposta para conter o coronavírus, embora sua gestão da pandemia tenha sido considerada a melhor do mundo.
Ardern e o desafio para mulheres na mídia
Pode até ser que o medo de perder eleições tenha contribuído. Mas não se pode ignorar a influência das mídias, tanto a tradicional como as redes sociais, em sua surpreendente decisão de sair do cargo.
Segundo a imprensa neozelandesa, ameaças contra ela nas redes sociais quase triplicaram em três anos. Pelo menos oito se transformaram em investigações policiais.
Na despedida, Ardern salientou que assédio e abuso não foram fatores determinantes para a decisão. Mas até seu substituto, Chris Hipkins, disse que o abuso sofrido por ela foi “abominável”.
Jacinda Ardern não é uma mulher inexperiente em lidar com a mídia. Em 2001, obteve um bacharelado em Estudos de Comunicação com especialização em política e relações públicas. Foi consultora no gabinete do primeiro-ministro britânico Tony Blair. Seu companheiro, Clarke Gayford, é apresentador de rádio e TV.
Um de seus momentos inesquecíveis no cargo foi a reação calma quando um terremoto fez tremer a terra no momento em que dava uma entrevista coletiva.
Mas preparo e experiência não foram suficientes para neutralizar o impacto do que ela enfrentou. Além de discurso de ódio e misoginia, Jacinda Ardern tornou-se exemplo dos problemas de representação de mulheres na mídia, anônimas ou famosas.
Em novembro, em encontro bilateral com a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, um repórter indagou se o motivo da reunião era o fato de as duas serem da mesma idade e terem muito em comum. A sorridente Jacinda Ardern vai ficando séria ao ouvir a pergunta.
Ela rebateu com elegância e ironia, questionando sobre se a mesma pergunta tinha sido feita quando Barack Obama, então presidente dos EUA, visitou seu colega neozelandês, Jonh Kau. Ambos tinham a mesma idade.
Marin arrematou, dizendo que estavam se encontrando “simplesmente porque as duas eram primeiras-ministras”.
Por trás da elegância na resposta a perguntas infelizes, as mágoas se acumulam, porque ninguém − da primeira-ministra famosa à jornalista foca diante de um entrevistado importante ou à jovem executiva que discorda de subordinados homens − fica insensível ao constatar que ao quebrar o teto de cristal muitas vezes os cacos voam e ferem.
O teto de cristal é uma metáfora para indicar a dificuldade de mulheres chegarem ao topo da carreira. Elas veem o céu, mas não conseguem alcançá-lo. Quando conseguem, o preço pode ser alto.
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A cobertura da imprensa sobre a saída de Jacinda Ardern está cheia de sugestões de fraqueza para encarar obstáculos associadas ao fato de ela ser mulher.
A BBC teve que se desculpar pelo título de um artigo sobre a renúncia da primeira-ministra, revelador do sexismo a que mulheres na política, nas corporações, na ciência e no jornalismo ainda são submetidas: “Jacinda Ardern renuncia: as mulheres podem realmente ter tudo?”.
Deveriam poder, mas algumas desistem, e isso não é apenas por abuso nas redes sociais. A mídia tradicional tem seu quinhão de culpa.
Muitos atribuem o olhar sexista da mídia ao predomínio de homens em cargos de chefia nas redações, mas pode ser mais do que isso.
O artigo da BBC foi escrito por uma jornalista, mas não se sabe se ela também foi autora do título. De qualquer forma, o contexto era o questionamento sobre a possibilidade de conciliar carreira e família, e veio de uma mulher.
O que levou à renúncia de Jacinda Ardern − ou que pode ter contribuído para ela − e o ângulo pelo qual a decisão foi abordada indica que ainda há um longo caminho a percorrer na representação de mulheres.
Para quem duvida: na mesma semana em que Jacinda Ardern deixava o cargo, Sanna Marin teve novamente que contornar perguntas sobre impacto de sua idade e sexo no posto de primeira-ministra em pleno Fórum Econômico de Davos.
O jornalista Fareed Zakaria, que tem um programa na CNN e uma coluna no Washington Post e fazia a mediação de um encontro sobre equidade de gênero com a primeira-ministra, abriu a pergunta admitindo que sabia que ela não gostava de falar sobre o assunto, e é imediatamente cortado:
“Não temos que falar sobre isso”.
Mas ele insiste, sob risos e aplausos da plateia, afirmando que existe uma fascinação do público sobre isso, e o quanto ser mulher havia influenciado em seu entendimento dos problemas.
Sanna Marin devolve ressaltando a importância da inclusão de todos os gêneros para lidar com os problemas do país, afirmando que o gênero não importa. E dá uma aula sobre o que não perguntar a uma mulher durante uma entrevista.
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