Londres – A mais recente vรญtima da dificuldade de encontrar o tom certo para noticiar temas que envolvem minorias ou grupos sociais  รฉ o New York Times, que hรก duas semanas atravessa uma crise motivada por sua cobertura sobre questรตes relacionadas a pessoas transgรชnero.

Em uma aรงรฃo coordenada, a direรงรฃo do jornal recebeu no dia 16 de fevereiro duas cartas disparando o que profissionais e organizaรงรตes consideram um tratamento irresponsรกvel e tendencioso, capaz de ferir sentimentos e influenciar polรญticas pรบblicas e projetos de lei que tramitam em vรกrios estados.

Uma delas partiu da GLAAD (Alianรงa Gay e Lรฉsbica Contra a Difamaรงรฃo, na sigla em inglรชs) e foi assinada por mais de 100 organizaรงรตes, ativistas e celebridades do showbiz.

Um caminhรฃo com um letreiro luminoso foi estacionado diante da porta do jornal para provocar impacto. 

No entanto, o maior impacto foi causado pela outra carta. Endereรงada a Philip Colbert, editor de Padrรตes, foi endossada inicialmente por articulistas antigos, atuais e integrantes da equipe de jornalistas do Times e virou notรญcia em vรกrios paรญses. 

A iniciativa foi de um grupo de nove colaboradores trans e cis do jornal  (Harron Walker, Muna Mire, Sean T. Collins, Jo Livingstone, Cecilia Gentili, Eric Thurm e Olivia Aylmer), dando forma concreta a crรญticas isoladas que vinham sendo feitas por organizaรงรตes como a GLAAD nos รบltimos meses. 

A carta foi publicada na internet para que outras pessoas apoiassem o protesto. 

Na sexta-feira (24), o grupo que organizou o manifesto informou que mais de 1,2 mil funcionรกrios e mais de 34 mil profissionais de mรญdia, leitores e assinantes do Times jรก tinham assinado a carta, sob a convocaรงรฃo “Tell the New York Times: Enough is Enough” (Diga ao New York Times: Basta).

Citando exemplos, eles afirmam:

“As diretrizes editoriais do jornal exigem que os repรณrteres โ€œpreservam um distanciamento profissional, sem qualquer indรญcio de preconceitoโ€ ao cultivar suas fontes, permanecendo โ€œsensรญveis ao fato de que as relaรงรตes pessoais com as fontes de notรญcias podem se transformar em favoritismo, de fato ou aparรชnciaโ€.

No entanto, nos รบltimos anos, o Times tratou a diversidade de gรชnero com uma mistura estranhamente familiar de pseudociรชncia e linguagem eufemรญstica e carregada, ao publicar reportagens sobre crianรงas trans que omitem informaรงรตes relevantes sobre suas fontes.”

O manifesto faz a ressalva de que hรก repรณrteres do Times cobrindo questรตes trans de maneira justa.

Mas reclama que “o trabalho deles รฉ eclipsado pelo espaรงo dedicado na primeira pรกgina para debater a propriedade do atendimento mรฉdico para crianรงas trans publicadas apenas nos รบltimos oito meses, que teria sido de 15 mil palavras. 

O levantamento foi feito pelo jornalista Tom Stocca, que aponta uma “obsessรฃo do New York Times por crianรงas transgรชnero”, o que alimentaria um pรขnico moral sobre a saรบde delas.

A carta compara a cobertura atual do New York Times ร  da homossexualidade e da Aids.

Os autores recordaram uma manchete de 1963 que dizia: โ€œO crescimento da homossexualidade aberta na cidade provoca ampla preocupaรงรฃoโ€, e anunciava que a cura gay estava a caminho.

Mais recentemente, na dรฉcada de 1980, o jornal nรฃo teria dado matรฉrias de capa sobre a Aids atรฉ 1983, quando o vรญrus jรก havia matado 500 nova-iorquinos. E usava eufemismos nos obituรกrios, como โ€œdesordem raraโ€, para explicar a causa da morte.

Agora, diz o manifesto, o jornal estรก โ€œseguindo a lideranรงa de grupos de รณdio de extrema-direita ao apresentar a diversidade de gรชnero como uma nova controvรฉrsia que justifica legislaรงรตes punitivasโ€.

Um exemplo citado รฉ o de um parecer do procurador-geral de Arkansas em defesa de um projeto de lei criminalizando certos procedimentos mรฉdicos para menores de idade, como bloqueadores de puberdade.

O procurador usou trรชs reportagens do New York Times para fundamentar sua opiniรฃo.

No final os autores da carta sustentam que โ€œnรฃo o jornal nรฃo retrata os milhares de pais que simplesmente amam e apoiam seus filhos [trans], ou sobre os profissionais do New York Times obrigados a suportar um local de trabalho tornado hostil pelo preconceito โˆ’ um perรญodo de tolerรขncia que termina hojeโ€.

A resposta do jornal

A crise jรก era ruim, e ficou ainda pior por causa da reaรงรฃo do New York Times, que desafiou um princรญpio elementar de gerenciamento dessas situaรงรตes: evitar colocar mais lenha na fogueira e dialogar em vez de confrontar. 

No dia seguinte ร s duas cartas, publicou um artigo assinado pela colunista Pamela Paul em defesa da controversa escritora J.K.Rowling, renegada por suas manifestaรงรตes sobre pessoas trans atรฉ por atores que alcanรงaram o estrelato representando personagens de seu Harry Potter.

Houve tambรฉm reaรงรฃo interna, com um e-mail do editor Joe Kahn e da editora de opiniรฃo Katie Kingsbury pedindo calma.

Bem pouco calmos, entretanto, eles avisaram que โ€œnรฃo seria bem-vinda nem tolerada a participaรงรฃo de jornalistas do Times em protestos organizados por grupos de defesa ou ataques a colegas nas mรญdias sociais e outros fรณruns pรบblicosโ€.

Na visรฃo do jornal a cobertura de questรตes que envolvem transgรชneros, inclusive nas matรฉrias do jornal destacadas na carta, รฉ relevante, bem apurada e โ€œescrita com sensibilidadeโ€.

Mas parece ter faltado sensibilidade ao lidar com um tema tรฃo delicado, que envolve nรฃo apenas polรญticas pรบblicas, mas a prรณpria situaรงรฃo individual de pessoas trans ou que tenham parentes ou amigos trans e discordem da forma como o jornal vem tratando o assunto.

Os autores do manifesto reclamaram que mais de uma semana depois de a carta ter sido enviada, a รบnica resposta direta do Times ร  – alรฉm da resposta de ausรชncia automรกtica do editor de padrรตes padrรตes Philip Corbett – veio por meio de seu departamento de comunicaรงรตes externas, que emitiu uma nota para a imprensa rejeitando as crรญticas. 

E acrescentaram que nas รบltimas duas semanas, a legislaรงรฃo que limita o acesso a cuidados de afirmaรงรฃo de gรชnero avanรงou em diversos estados americanos, mas os leitores foram pouco informados sobre os acontecimentos. 

New York Times nรฃo puniu jornalistas 

Houve tambรฉm envolvimento do sindicato de profissionais, o NewsGuild de Nova York, que defendeu o direito de os jornalistas se manifestarem sobre as condiรงรตes do local de trabalho. 

A defesa virou outra polรชmica. Dezenas de jornalistas, alguns vencedores do prรชmio Pulitzer, publicaram uma carta apoiando  a posiรงรฃo do editor Joe Kahn e discordando de que trata-se de um problema que afete o ambiente de trabalho. .

โ€œO jornalismo factual e preciso que รฉ escrito, editado e publicado de acordo com os padrรตes do Times nรฃo cria um local de trabalho hostilโ€, escreveram eles. โ€œSomos jornalistas, nรฃo ativistas. Essa linha deve ser claraโ€.

Embora a reaรงรฃo da direรงรฃo do jornal tenha sido ameaรงadora, atรฉ o momento nรฃo se sabe de nenhuma puniรงรฃo.

Segundo a revista Vanity Fair, foram feitas reuniรตes individuais com vรกrios signatรกrios da carta avisando que nรฃo seriam suspensos ou demitidos, mas que uma referรชncia ao caso iria para o arquivo de cada um, e que  “haveria consequรชncias” se voltassem a se manifestar contra o jornal. 

A crise pode estar longe de acabar, pois a carta aberta continua recebendo assinaturas, e os que desencadearam o movimento parecem decididos a continuar a pressionar o New York Times por mudanรงas na linha editorial em sua cobertura sobre pessoas transgรชnero.