Londres – Governos, poder judiciário e grupos envolvidos em conflitos estão impondo desligamentos de acesso ou de serviços na internet a taxas crescentes: somente em 2022, foram registrados pelo menos 187 bloqueios em 35 países, um deles o Brasil.
O alerta foi feito pela organização de direitos humanos digitais Access Now em seu relatório anual sobre interrupções de acesso à rede ou a serviços como o uso de plataformas de mídia social.
“Os desligamentos não estão apenas ressurgindo após uma diminuição no auge da pandemia – eles estão durando mais, visando populações específicas e estão sendo realizados quando as pessoas mais precisam de uma conexão – inclusive durante crises humanitárias, protestos em massa e conflitos e guerras ativos”, constatou a ONG no documento intitulado Weapons of Control, Shields of Impunity (armas de controle, escudos de impunidade).
Índia, campeã de bloqueio à internet
A Access Now lidera a coalizão #KeepItOn, que reúne mais de 300 organizações em 105 países comprometidas em combater bloqueios na internet globalmente.
Os autores do relatório, publicado na sexta-feira (3), salientam que o levantamento pode não cobrir todos os bloqueios, já que os dados dependem de medições técnicas e informações sobre o contexto em que ocorreram.
O ano de 2019 ainda é o recordista de bloqueios, com 213 casos registrados. Em 2020, ano da pandemia, os desligamentos caíram para 159, mas voltaram a subir no ano seguinte, para 184, e agora para 187.
Em períodos de agitação e conflito, ou apenas durante os exames escolares anuais, governos, militares e forças policiais mantiveram as pessoas desconectadas como uma forma desesperada de controle.
Por períodos prolongados, os que estavam no poder usaram os desligamentos para silenciar as pessoas, muitas vezes visando comunidades específicas por meio de blecautes completos, desligamentos localizados e bloqueio de plataformas.
O campeão de paralisações continua sendo a Índia, com 84 episódios em 2022. O país governado por Narendra Modi ocupa a liderança na lista pelo quinto ano consecutivo.
Desde que os bloqueios passaram a ser documentados, em 2016, a Índia foi responsável por 58% de todas as paralisações do banco de dados da Access Now.
Outros países seguiram o exemplo, usando paralisações como uma arma para o controle social e um escudo para violência e opressão, diz a Access Now. A Ucrânia aparece em segundo lugar, com 22 bloqueios realizados pela Rússia.
Durante a invasão da Ucrânia pela Rússia, os militares russos cortaram o acesso à Internet pelo menos 22 vezes, envolvendo-se em ataques cibernéticos e destruindo deliberadamente a infraestrutura de telecomunicações.
Os militares de Mianmar persistiram em manter as pessoas desconectadas por longos períodos, visando áreas onde a resistência ao golpe é mais forte.
O regime iraniano respondeu aos protestos provocados pela morte de Mahsa (Jina) Amini, de 22 anos, impondo 18 paralisações, uma maior escalada de suas táticas repressivas.
Autoridades ou grupos envolvidos em conflitos nos 35 países impuseram paralisações durante protestos, conflitos ativos, exames escolares, eleições, períodos de instabilidade política ou eventos como feriados religiosos ou visitas de representantes do governo, com o objetivo final de afirmar o controle e silenciar vozes.
Na América Latina, apenas Brasil e Cuba foram apontados como países em que a internet ou serviços foram bloqueados.
Em Cuba, segundo o levantamento, o acesso à internet foi interrompido duas vezes durante os protestos de julho e setembro, após o furacão Ian.
No Brasil, a Access Now listou o bloqueio do Telegram pelo Supremo Tribunal Federal, em março, depois que a plataforma não cumpriu ordens para remover desinformação relacionada às eleições presidenciais.
“A maioria dessas paralisações também forneceu cobertura para os perpetradores cometerem abusos de direitos humanos impunemente”, afirma a organização.
Cinco países impuseram paralisações relacionadas às eleições em 2022. Mas nem tudo foi má notícia.
A coalizão #KeepItOn registrou algumas vitórias importantes, conseguindo evitar bloqueios à internet em países como Gâmbia , que atravessou o período eleitoral sem interrupções, e o Quênia, apesar do órgão estatutário, a Comissão de Coesão e Integração da Nação (NCIC), ter pedido uma suspensão do Facebook.
Bloqueios de internet e direitos humanos
A Access Now sustenta que todos os desligamentos da internet violam os direitos humanos.
Em 2022, 133 do total de 187 desligamentos ocorreram juntamente com alguma forma de violência, em comparação com 112 em 2021, 99 em 2020 e 75 em 2019.
Em alguns contextos, como o Irã, as autoridades responderam aos protestos com regressões brutais e desligamentos da internet, e em outros contextos, como durante conflitos e guerras, governos, partes em guerra ou regimes militares implantaram desligamentos em aparentes tentativas de esconder violações dos direitos humanos e do direito humanitário, como assassinato, tortura, estupro e outros crimes de guerra.
Os ataques de mísseis levaram a 15 paralisações em 2022 — 14 lançados pelos militares russos em cidades da Ucrânia e um lançado pelas forças da coalizão lideradas pela Arábia Saudita em uma instalação de telecomunicações no Iêmen.
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Os desligamentos móveis continuaram a visar grupos marginalizados, incluindo minorias étnicas e religiosas e outros grupos vulneráveis, alerta o relatório.
As paralisações aprofundam a divisão digital de gênero, interrompendo a capacidade de as mulheres empreenderem ou acessarem informações sobre saúde reprodutiva.
A falta de acesso a recursos, a incapacidade de se comunicar com os entes queridos e a dificuldade de enviar ou receber notícias são apenas alguns dos impactos que cada bloqueio causa.
Bloqueios prolongados
À medida em que a pandemia continuou a diminuir em muitas partes do mundo em 2022, as paralisações superaram os níveis pré-pandêmicos e atingiram marcos sombrios”, diz o relatório da Access Now.
O número de paralisações em outros países além da Índia superou 100 pela primeira vez.
Nove países — Bangladesh, Índia, Irã, Jordânia, Líbia, Mianmar, Sudão, Turcomenistão e Ucrânia (impostos pela Rússia) — tiveram pelo menos quatro paralisações em 2022, em comparação com sete países com pelo menos quatro paralisações em 2019.
Durante a agitação política, movimentos de protesto, violência e conflitos ativos, milhões de pessoas nesses nove países experimentaram paralisações frequentes e severas com regularidade perturbadora.
Ainda há 16 paralisações em vigor no mundo, das quais 12 delas com pelo menos um ano de duração, de acordo com o levantamento.
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Governos sofisticam métodos de bloqueio
Segundo a Access Now alguns governos estão sofisticando a forma de implementar desligamentos, a fim de atingir mais diretamente certos grupos, bem como para minimizar as repercussões econômicas.
“O impacto desastroso desses atos de autoritarismo digital motiva o Access Now e a coalizão #KeepItOn a continuar, e a rede de parceiros que trabalham para acabar com os desligamentos da Internet, por sua vez, se tornou mais forte e diversificada”, diz o relatório.
Os bloqueios na internet entraram no radar da ONU. Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH) emitiu seu primeiro relatório dedicado sobre desligamentos da internet, destacando o impacto devastador que eles têm nas vidas humanas.
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Recomendações para a sociedade
O documento faz recomendações para reverter a situação. Aos governos, pede compromisso com as leis e com os princípios do movimento KeepItOn.
As plataformas digitais são instadas a compartilhar detalhes sobre como e quando ocorrem as paralisações que afetam seus serviços e adotar as medidas necessárias para tornar suas plataformas e serviços resistentes a desligamentos sempre que possível.
Uma das recomendações é fazer investimentos apropriados em moderação de conteúdo de alta qualidade e liderada por humanos, evitando justificativas para bloqueios particularmente em momentos de crise políticas e institucionais.
Em 2022, o Twitter foi a plataforma mais bloqueada, com 13 episódios em 11 países. O Telegram foi bloqueado em sete outros mercados além do Brasil.
O relatório completo pode ser visto aqui.
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