Londres – O terremoto que atingiu a Turquia e a Síria no dia 6 de fevereiro já deixou mais de 40 mil mortos e abalou também as já frágeis estruturas da democracia turca, com um cerco crescente de censura e intimidação a jornalistas que tentam cobrir o desastre humanitário e a cidadãos que se expressam nas mídias sociais.

Desde o tremor as autoridades turcas já detiveram pelo menos quatro jornalistas, abriram investigações criminais contra dois repórteres e um comentarista, e perseguiram ou dificultaram o trabalho de pelo menos outros seis profissionais da imprensa, de acordo com reportagens e jornalistas ouvidos pelo Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ).

As denúncias de violação se somam ao bloqueio do Twitter, que deixou de funcionar por algumas horas logo após o terremoto, provocando protestos de organizações internacionais como a AccessNow devido ao efeito sobre ações humanitárias e resgate de feridos. 

E segundo reportagem da agência Reuters, a polícia já teria prendido pelo menos  78 pessoas acusadas de criar medo e pânico ao “compartilhar mensagens provocativas” sobre o terremoto da semana passada nas redes sociais. 

O governo criou um aplicativo para smartphone que permite aos usuários denunciar pessoas que supostamente produziram ou disseminaram notícias falsas ou desinformação online. 

Terremoto complica imagem do governo 

No poder desde 2003, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, é um notório inimigo da liberdade de expressão e imprensa. O país ocupa o 149º lugar no ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras.

O terremoto aconteceu em um momento ruim para seu governo, que enfrenta eleições gerais em maio.

O desastre natural pode acabar sendo a cartada final em um país que enfrenta uma forte inflação e questionamentos crescentes à autoridade de Erdoğan e de seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP).

Por conta do terremoto, começaram a emergir notícias sobre a relação do atual governo turco com empreiteiras responsáveis pela construção de novos prédios no país – muitos dos quais desabaram agora.

Quando Erdoğan cegou ao poder, em 2003, fazia pouco tempo que a Turquia havia passado por outro grande terremoto, em 1999. À época, foram aprovadas novas regras para a construção de edifícios, que deveriam ter estruturas mais protegidas para o caso de novos tremores.

Ainda assim, segundo fontes internacionais, o governo de Erdoğan fez acordo com empreiteiras e perdou falhas em novas construções, alegando urgência para a criação de novas moradias.

O representante de um comitê de engenheiros, arquitetos e urbanistas disse, em entrevistas à BBC, que até 75 mil edifícios na área afetada pelo terremoto no sul da Turquia tiveram anistias de construção concedidas pelo governo.

Censura a jornalistas na Turquia

Com tantas crises para gerenciar após o terremoto, o governo da Turquia parece ter optado, mais uma vez, pela opção mais fácil:  a censura a jornalistas e cidadãos. O clima no país está cada vez mais tenso para quem noticia assuntos desfavoráveis ao atual governo e para os usuários de redes sociais. 

Desde o terremoto, vários profissionais de imprensa relatam terem sofrido perseguição de autoridades ou dificuldades para realizar seu trabalho de cobertura em campo, a maioria deles trabalhando em veículos de oposição ao governo de Erdogan. 

O jornalista Merdan Yanardağ e o comentarista Enver Aysever enfrentam investigações criminais desde o dia 7 de fevereiro, quando foram acusados pelo gabinete do procurador-chefe de Istambul de “provocar o povo à animosidade e ódio”, segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas, citando reportagem da agência de notícias estatal Anatolia Agency.

O relatório diz ainda que as investigações foram motivadas por comentários feitos ao vivo por Yanardağ durante o jornal da TELE1, canal pró-oposição do qual o jornalista é editor-chefe e âncora.

Já a investigação contra Aysever estaria relacionada a postagens que ele fez nas redes sociais – o comentarista tem 1,7 milhão de seguidores em sua conta no Twitter e cerca de 56 mil inscritos em seu canal de YouTube, onde costuma postar comentários políticos.

Confira uma das entrevistas recentes do jornalista (é possível ativar legendas automáticas em português ou inglês):

Se condenados, os profissionais podem pegar entre um e três anos de prisão.

Em outro caso, as autoridades estão investigando Mehmet Güleş, um repórter da agência de notícias pró-curda-curda Mezopotamya, por supostamente “espalhar desinformação”, de acordo com reportagens da mídia local.

A polícia deteve Güleş na cidade sudeste de Diyarbakır em 8 de fevereiro enquanto ele entrevistava um trabalhador de resgate, e perguntou se o voluntário havia criticado a reação do estado ao desastre. A investigação decorre daquela entrevista, que não foi publicada.

Ele também enfrenta de um a três anos de prisão se for acusado e condenado, segundo o CPJ. O Comitê listou outros casos de repórteres que foram detidos, interrogados, agredidos ou impedidos de acessar áreas afetadas pelo desastre natural.

Censura a cidadãos depois do terremoto 

As tentativas de censura praticadas pelo governo da Turquia para conter críticas depois do terremoto chegaram também às redes sociais, com as quais Erdogan tem uma briga histórica.

Em 2021, quando o país foi devastado por incêndios florestais, o Ministério Público da Turquia abriu uma investigação sobre o conteúdo compartilhado com a hashtag “#HelpTurkey” nas redes sociais. E ameaçou multar canais de TV que exibam imagens ao vivo dos incêndios ou matérias “que provocassem medo e preocupação”.

Embora as TVs tenham em sua maioria obedecido, nas redes sociais a intimidação não teve efeito, e a tentativa ganhou visibilidade internacional. 

Desta vez Erdogan foi mais longe: em vez de apenas intimidar, suspendeu o Twitter no dia 8 de fevereiro e restaurou o acesso supostamente depois de uma conversa com os dirigentes da rede social. Segundo a ONG de direitos digitais Access Now, apenas usuários com Redes Privadas Virtuais (VPNs) conseguiram acessar a plataforma. 

“As vidas das pessoas estão em jogo após o terremoto mortal e a crise humanitária em curso na Turquia. Este é um momento desastroso para o governo desconectar as pessoas das plataformas de comunicação”, disse Felicia Anthonio, gerente de campanha #KeepItOn da Access Now.

“O que milhões de pessoas em toda a Turquia precisam é de uma internet aberta, segura, confiável e acessível para se manter conectado, acessar informações, solicitar doações e apoio humanitário e apoiar coletivamente uns aos outros.”

Não é a visão do governo, que prefere bloquear contas para não ser criticado e usa as redes sociais para intimidar.

No dia 10 de fevereiro, a polícia tuitou informando que já tinham sido identificados 302 donos de contas “que fizeram postagens provocativas sobre o terremoto em plataformas de mídia social, dos quais 37 pessoas foram detidos, 10 presos”. 

A nota acrescenta que “sites que querem abusar de nossos cidadãos benevolentes foram fechados”.

O Parlamento da Turquia aprovou em outubro de 2022 um projeto de lei apresentada pelo partido do governo que prevê condenação a jornalistas e cidadãos a até três anos de prisão por conteúdo classificado como desinformação e fake news.