Londres – No mesmo dia em que os EUA estão em alerta devido ao chamado feito pelo ex-presidente Donald Trump a apoiadores que o ajudem a evitar uma prisão iminente, uma corte do estado de Delaware ouvirá as duas partes do caso bilionário envolvendo a Fox News e a empresa de urnas eletrônicas Dominion. 

Os advogados apresentaram nesta terça-feira (21) argumentos a Eric Davis, juiz do tribunal superior de Delaware, que pode dar ganho de causa antecipado a uma das partes ou deixar o caso ir a julgamento, em abril – caso Fox e Dominion não chegam a um acordo antes. 

Em março de 2021, a Dominion Voting Systems, que forneceu equipamentos para as eleições em 28 estados americanos em 2020, entrou com uma ação de difamação contra a rede de propriedade do magnata da mídia Rupert Murdoch, apoiadora do presidente Trump, cobrando US$ 1,6 bilhão de indenização sob o argumento de que mentiras espalhadas sobre a segurança de seus sistemas, que teriam sido usados para fazer Joe Biden ganhar a disputa, prejudicaram a confiança no negócio. 

O juiz foi descrito em reportagem da Bloomberg como “estável” e impassível, incapaz de se influenciar pela mídia. 

 O que está em jogo nos processos contra a Fox 

Não é a primeira vez que uma empresa reclama de um veículo de mídia por reportagens que supostamente a prejudicam.

Mas o caso é emblemático porque coloca em pauta a responsabilidade da mídia ao deixar convidados, entrevistados ou mesmo comentaristas de seus próprios quadros emitirem opiniões não baseadas em fatos que possam causar prejuízos a terceiros – uma questão de liberdade de imprensa e de expressão. 

E expõe também a extensão da desinformação eleitoral e o papel da mídia ao endossá-la, que nos EUA levou a extremismos como o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, antes da posse de Joe Biden. 

Dominion x Fox por credibilidade das urnas eletrônicas 

Não é só a Dominion: a primeira a processar foi a Starmatic

Embora o caso movido pela Dominion esteja recebendo mais atenção da mídia, a primeira empresa a processar a Fox, em fevereiro de 2021, foi a Starmatic, responsável pelo software do condado de Los Angeles. O juiz Eric Davis também está responsável por essa ação. 

As duas causas somadas poderiam custar US$ 4,3 bilhões aos cofres da Fox. 

“As alegações eram uma mentira. E a Fox sabia disso”, disse a Starmatic, que tem sede em Londres e pede indenização de US$ 2,7 bilhões. 

“A Fox negligenciou a verdade porque as mentiras eram boas para os negócios”, acusou a Dominion.

Ambas as empresas alegam que nos meses que se seguiram à eleição presidencial de 2020, vários apresentadores da Fox News ajudaram a disseminar uma falsa narrativa sobre elas, apesar de os entrevistados pela emissora nunca terem apresentado evidências que comprovassem suas alegações.

Há duas semanas, a tentativa da Fox de encerrar o processo da Starmatic foi rejeitada por um tribunal de apelações. 

A Suprema Corte do estado de Nova York deu sinal verde para a ação judicial  prosseguir contra a Fox News, a apresentadora da Fox Business Maria Bartiromo, o ex-âncora de negócios Lou Dobbs e o ex-advogado de Trump, Rudy Giuliani.

De que as empresas reclamam 

A Fox deu espaço para alegações de que a Dominion fraudou a eleição de 2020 por contagens de votos manipuladas, que era propriedade de uma empresa venezuelana e estava manipulando a eleição para Hugo Chávez e que pagou propinas a funcionários do governo. 

A Fox sabia que essas alegações eram comprovadamente falsas, dizem os advogados da Dominion, e optou por transmiti-las de qualquer maneira para agradar seu público conservador.

As mensagens comprometedoras expostas pela Dominion

Uma das razões para a visibilidade maior do processo da Dominion é a exposição de mensagens internas que no entendimento de seus advogados, comprovariam que a Fox News agiu deliberadamente para endossar as acusações de fraude eleitoral usando as urnas eletrônicas, mesmo sabendo que isso não era verdade, para não decepcionar sua audiência e perder público. 

Os emails mostram que os principais apresentadores da Fox, incluindo Tucker Carlson, Sean Hannity e Laura Ingraham, duvidam das alegações sobre a Dominion, mesmo quando a rede continuou a transmiti-las.

Entre a mensagens mais curiosas estão as assinadas  pelo controvertido Carlson, que sempre se apresentou como aliado de Donald Trump e já admitiu publicamente que mente na TV.

Parece ser verdade mesmo. Em janeiro de 2021, antes da invasão do Capitólio, ele escreveu sobre Trump a um colega dizendo que “o odiava apaixonadamente”, e que não via a hora de poder ignorar o ex-presidente todas as noites”. 

Em um depoimento explosivo, o dono da rede, Rupert Murdoch reconheceu que pessoalmente poderia ter feito mais para impedir a divulgação de falsas alegações sobre as urnas eletrônicas, mas não o fez.

A defesa da Fox 

O argumento dos advogados do processo contra a Fox é baseado na primeira emenda da Constituição americana, que garante a liberdade de expressão.

Sob essa ótica, transmitir alegações sobre fraude eleitoral com as urnas eletrônicas, mesmo sem qualquer evidência, seria enquadrado como exercício da livre opinião. 

A equipe jurídica da Fox News argumenta que a rede simplesmente transmitiu alegações sobre as eleições nacionais, seja como “perguntas a um jornalista sobre assuntos interessantes” ou “relatando com precisão as alegações pendentes”.

A legislação americana é rigorosa para casos de difamação, exigindo que os queixosos mostrem que uma organização de notícias agiu com “malícia real” ou sabia que uma declaração era falsa ou agiu com desrespeito imprudente à verdade – e é isso que as mensagens internas procuram comprovar. 

Os advogados da Dominion rebatem dizendo que a Fox News está reivindicando “uma licença de primeira emenda para espalhar mentiras conscientemente” 

Outro caminho, seguido por alguns âncoras envolvidos nos processos, é distanciar-se da qualificação de jornalistas. É o que faz Sean Hannity, da Fox. 

Em abril do ano passado, depois de uma reportagem da CNN mostrando uma suposta “cooperação” com Mark Meadows, então chefe de gabinete de Trump na época das eleições de 2020, ele afirmou que não era jornalista e sim um apresentador de talk-show. 

No ar, ele disse: 

“Eu me esforço para explicar qual é o meu trabalho, porque muitas pessoas […] não entendem o que fazemos. Sim, sou membro da imprensa… Estou no canal Fox News—que é um canal de notícias—mas não me apresento como jornalista.”

Os vereditos dos processos contra a Fox, caso os casos chegam a julgamento por falta de acordo, servirão também para validar ou invalidar a tese de que apresentadores em um canal de notícias – ou mesmo entrevistados em talk-shows- possam propagar desinformação sob a proteção do direito à liberdade de expressão. 

Riscos para o futuro da Fox News?

Se Ruppert Murdoch, dono do império de mídia News Corp., estava preocupado com perda de audiência e por isso não fez o que podia, em suas próprias palavras, para evitar a disseminação de falsas alegações sobre as urnas eletrônicas na Fox, isso pode não ter resolvido o problema no longo prazo. 

Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Angelo Carusone, presidente da Media Matters, um grupo de acompanhamento de assuntos de mídia, disse acreditar que os processos enfraquecerão a reputação da Fox diante do público. 

Há também riscos financeiros, caso ela perca os processos e audiência ao mesmo tempo. 

Segundo Carusone, outra ameaça é uma possível dificuldade de renovar contratos com empresas de de TV a cabo nos EUA.  

A Fox cobra preços altos por seus pacotes, mas pode ver seu público desinteressado em investir depois do desgaste, mesmo que as duas empresas de urnas eletrônicas não vençam os processos caso a justiça não enxergue difamação, diz o analista.