Sydney – A ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Jacinda Ardern chegou ao poder com vários projetos para mudar o país, mas não contava com o sexismo da mídia.
Os jornalistas pareciam mais interessados no fato de ela ser mulher e jovem. Tinha 37 anos quando se elegeu, em 2017.
Durante seus mais de cinco anos no poder – e como uma das poucas lideranças femininas mundiais – ela teve que continuar a lidar com jornalistas ou políticos que faziam comentários frequentes em relação ao seu gênero ou idade.
Sexismo no Parlamento ganhou a mídia social
Em 2012, quando já estava no Parlamento, ouviu de uma colega durante uma sessão plenária: “fecha a boca, docinho”.
Essa frase foi usada frequentemente para atacá-la nas mídias sociais quando se tornou primeira-ministra.
Logo que se elegeu, um conhecido economista neozelandês tuitou que ela precisava provar que não era “apenas mais um rostinho bonito”, o que provocou reações de políticos e apoiadores pela linguagem misógina.
Durante seu tempo como líder da nação, foi chamada de “tia Cindy”, “comunista bonitinha”, “bom partido”, e “babe” pela mídia e por comentaristas online.
Jornalistas chegaram ao ponto de perguntar porque ela tingiu o cabelo, ou formar um painel para debater seu direito de engravidar durante o mandato.
O assédio constante virou caso de polícia quando um clube de strip-tease usou uma imagem adulterada de Ardern quase nua, de salto alto, para promover seus serviços.
Segundo a imprensa neozelandesa, pelo menos oito ataques a ela se transformaram em investigações policiais.
Leia também | EUA | AOC, George Santos e a representação de gênero na mídia: “É preciso que mulheres contem as histórias”
Apresentador quis saber se filho foi concebido durante campanha eleitoral
Um dos pontos mais baixos dos comentários sexistas veio do apresentador australiano do canal 9 de televisão, Charles Wooley, de 75 anos.
“Conheci muitos primeiros-ministros em meu tempo, mas nenhum tão jovem, não muitos inteligentes, mas nunca alguém tão atraente”.
Ele também disse que estava “encantado” com ela.
Se isso não bastasse, Wooley questionou sobre a gravidez da primeira-ministra, anunciada um mês antes, em janeiro de 2018, e a concepção do bebê. Primeiro, perguntou qual a data esperada para o nascimento da criança; Jacinda Ardern sorriu e respondeu 17 de junho.
Então, o apresentador arrematou:
“Interessante quantas pessoas agora estão calculando a data da concepção, para ver se aconteceu durante a campanha eleitoral”.
A primeira-ministra revirou os olhos, sorriu constrangida e respondeu: “A eleição havia acabado, não que precisemos entrar nesses detalhes”.
Essa entrevista foi qualificada de “repugnante” em muitos veículos da mídia internacional.
Encontro bilateral ou de amigas?
No fim do ano passado, a reunião bilateral governamental entre Jacinda Ardern e a primeira-ministra da Finlândia – Sanna Marin, 37 anos – foi um prato cheio para a mídia exercitar o sexismo.
“Vocês duas estão se encontrando só porque têm mais ou menos a mesma idade e muitas coisas em comum, como quando entraram na política, ou os neozelandeses podem esperar mais acordos entre os dois países?”, perguntou um repórter da rádio Newstalk ZB.
Ardern rebateu no ato, expondo a diferença de tratamento dado aos políticos homens:
“Gostaria de saber se alguém perguntou ao Barack Obama se ele encontrou [o ex-primeiro-ministro da Nova Zêlandia] John Key porque são mais ou menos da mesma idade”.
Leia também | Análise | Partida de Jacinda Ardern reacende debate sobre assédio e representação de mulheres na mídia
O fim da “Jacindamania”, mas não do sexismo da mídia
A primeira-ministra renunciou no dia 19 de janeiro de 2023, alegando não ter mais energia para continuar.
A ‘Jacindamania’ chegou ao fim, mas não o assédio e o sexismo da mídia.
Comentando a renúncia, o apresentador da Fox News Tucker Carlson, de 53 anos, a chamou de “senhora dentuça”.
A BBC escolheu a manchete “As mulheres podem ter tudo?” – assim mesmo, com um ponto de interrogação. As críticas foram tantas que a empresa teve que apagar a manchete e se desculpar.
Nunca saberemos o quanto esses episódios contribuíram para a renúncia da primeira-ministra.
Mas ao longo de toda a sua administração, nas interações com a imprensa, nos questionamentos dos jornalistas e nos ataques tanto da mídia tradicional como da online, o sexismo ficou evidente.
Num emocionado discurso de despedida, Jacinda Ardern desabafou:
“Eu sou humana. Políticos também são seres humanos.”
Este artigo faz parte do especial sobre representação de mulheres na mídia
Leia também | Invisíveis, rotuladas, atacadas: Relatório sobre representação de gênero na mídia traz soluções para alcançar igualdade