Londres – Ao aceitar pagar US$ 787,5 milhões (R$ 3,9 bilhões) à fabricante de urnas eletrônicas Dominion em um acordo para colocar fim ao processo por difamação, a rede americana Fox News foi obrigada a reconhecer em nota a decisão do tribunal de considerar “certas alegações contra a autora da ação como falsas”.
A Dominion queria mais, US$ 1,6 bilhão. Mas o dinheiro não é só o que é está em jogo em uma rara batalha levada até o fim por uma companhia que se julgou prejudicada em seus negócios por acusações da mídia
A empresa foi apontada como envolvida em manipulação do resultado da eleição que derrotou Donald Trump, programando o software para transferir votos dados ao ex-presidente a Joe Biden.
Processo foi vitória contra a desinformação praticada pela Fox
Longe de ser uma violação da liberdade de imprensa ao punir uma empresa de mídia por seu noticiário, ou da liberdade de expressão por impedir que convidados expressem suas opiniões, o resultado foi visto como uma vitória contra a desinformação praticada por uma rede de TV que se tornou símbolo de extremismo e de desinformação.
A Fox, que pertence ao magnata da mídia Rupert Murdoch, firmou-se no ambiente polarizado dos EUA na era Trump, dando voz a colunistas e convidados negacionistas das mudanças climáticas e das vacinas contra a covid, entre outros exemplos.
Parece exagero? O apresentador mais popular da Fox News, Tucker Carlson, é uma das figuras mais controvertidas do jornalismo americano. Ele tem um programa diário no horário nobre da rede.
Foi um dos que deu espaço para a tese de que as eleições de 202o tinham sido fraudadas. E teria que depor caso o acordo não tivesse sido selado antes do julgamento, assim como outras figuras polêmicas do elenco da Fox como Sean Hannity e Jeanine Pirro.
Carlson chegou a admitir em uma entrevista em 2021 que “tenta não mentir na TV”, mas que o faz “quando se sente encurralado, por fraqueza ou algo assim”.
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Foi um ato de “sincericídio” que em outras emissoras poderia ter lhe custado o cargo.
Não na Fox, porque ele não é o único – e porque como ficou comprovado em mensagens internas que vieram a público durante o processo, mentiras que agradavam a audiência faziam parte da estratégia de negócio.
Uma das linhas da defesa da Fox News no processo movido pela Dominion, conduzido pelo juiz Eric Davis, do tribunal superior de Delaware, foi a de descaracterizar seus apresentadores como jornalistas.
Isso faria com que o parâmetro jurídico válido nos EUA estabelecendo que reclamações por difamação só sejam aceitas se os queixosos provarem que o jornalista ou a empresa agiu com “malícia real”, não se aplicasse eles.
A equipe jurídica da Fox News argumentava que a rede simplesmente transmitiu alegações sobre as eleições nacionais, seja como “perguntas a um jornalista sobre assuntos interessantes” ou “relatando com precisão as alegações pendentes”.
Não colou – tanto que para evitar um desgastante julgamento que levaria três semanas e exporia o dono da Fox, Rupert Murdoch, de 92 anos, ao constrangimento de falar no tribunal, a rede jogou a toalha.
Embora uma parcela significativa dos americanos vá continuar acreditando que as eleições foram fraudadas e que Trump foi roubado, o desfecho do processo da Dominion contra a Fox pode fazer mídias extremistas pensarem duas vezes antes de propagaram desinformação.
Não necessariamente por responsabilidade mas pelo risco de um grande prejuízo financeiro.
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Suspense até o fim no julgamento Dominion x Fox News
O julgamento do processo da Dominion contra a Fox estava marcado para segunda-feira (17/4), e foi adiado pelo juiz para o dia seguinte porque um acordo parecia possível.
Na terça, a sessão foi atrasada. O acordo foi anunciado às 11 horas, depois que o júri de 12 pessoas já tinha sido selecionado e quando as duas partes apresentariam as alegações iniciais no Tribunal Superior de Delaware.
O advogado da Dominion, Justin Nelson, foi ao ponto da importância desse resultado para o jornalismo e para o combate à desinformação. Diante do tribunal, ele disse:
“A verdade importa, as mentiras têm consequências. O acordo de hoje representa a vitória da verdade e da responsabilidade.
Devemos compartilhar um compromisso com os fatos. A desinformação não vai desaparecer, e pode piorar. O dia de hoje é um endosso retumbante da verdade e da democracia.”
A Fox News conseguiu alguma vitória, pois deve ter negociado para que não tivesse que fazer um pedido de desculpas no ar. Mas isso foi desnecessário, porque toda a mídia americana noticiou o caso e o entendimento do juiz.
Um detalhe que pode passar despercebido mas foi apontado por comentaristas é que a nota da Fox não “admite”. Ela diz que “reconhece a decisão do tribunal”.
E a rede tentou ao máximo evitar exposição para sua audiência. Logo após o anúncio do acordo que deu fim ao processo, começaram a circular no Twitter postagens comentando sobre a reação da Fox.
O apresentador Howard Kurtz deu a notícia e leu a declaração da Fox, acrescentando uma fala irônica sobre o encerramento do caso antes do longo julgamento:
“Francamente, muita gente na grande mídia, anti-Fox, agora será privada desta oportunidade”.
Ele não falou do valor a ser pago à Dominion por seu empregador, comentando apenas que a reclamante havia tornado a cifra pública mas isso não tinha ainda sido “verificado de forma independente”.
Houve também postagens comentando que no noticiário das 17h, a principal matéria era “Elon Musk está investindo contra discursos esquerdistas preconceituosos”. O dono do Twitter foi entrevistado por Tucker Carlson.
O despacho do juiz que concedeu à Dominion o direito de um julgamento sumário, que a rede tentou evitar a todo custo, pode ser visto aqui.
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