condenação de duas jornalistas por ‘invasão de propriedade’ quando cobriam uma operação policial de despejo de pessoas que acampavam em um parque municipal nos EUA provocou protestos de organizações de liberdade de imprensa e de jornalismo, por não ter precedentes no sistema judicial do país e poder servir como base para decisões futuras.
Veronica Coit e Matilda Bliss, repórteres do portal The Asheville Blade, na Carolina do Norte, foram condenadas a pagar multa de US$ 100 e arcar com custas judiciais. Coit recebeu ainda pena de prisão de 10 dias (suspensa) e um ano de liberdade condicional.
Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, no dia do julgamento, em 16 de junho, o Departamento de Justiça dos EUA emitiu um relatório que afirma que “a aplicação de ordens de dispersão e toque de recolher” viola os direitos dos jornalistas – mas o Tribunal não aceitou a tese da defesa baseada na Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão.
15 jornalistas presos nos EUA em 2022
Embora ocupando o 45º lugar entre 180 países no Global Press Freedom Index da organização Repórteres Sem Fronteiras, os EUA têm experimentado uma degradação nas condições para a prática do jornalismo.
Quinze jornalistas foram presos nos no país em 2022, de acordo com a organização US Press Freedom Tracker.
A operação policial que Coit e Bliss tentaram documentar aconteceu na noite de Natal de 2021 em um trecho do parque Aston, na cidade de Asheville. A polícia obrigava todos a deixarem o local sob pena de prisão, removendo seus pertences.
Segundo relato do The Asheville Blade, as jornalistas condenadas documentavam a ação à distância. Um oficial alertou os colegas sobre a filmagem.
Imagens de câmeras corporais mostram um grupo de policiais caminhando por um longo trecho até as jornalistas. Elas são instruídas a deixar o parque, sob a justificativa de que o local já estava fechado para acesso do público.
Como se recusaram por estarem lá como jornalistas e não com visitantes, foram presas. Segundo o The Ashton Blade, posteriormente imagens da intervenção policial revelaram que os agentes já tinha decidido prende-las antes da recusa em deixar o local, devido às filmagens.
As duas jornalistas foram acusadas de “trespassing” (“invasão de propriedade”, nas leis dos Estados Unidos) em segundo grau de uma área que estava sob toque de recolher. A acusação poderia render multa de até US$ 200 e prisão de 20 dias.
Matilda Bliss teve o telefone apreendido e só devolvido três meses depois, tendo sido examinado pela polícia para buscar evidências de que ela estaria ligada a “grupos extremistas anarquistas”.
As duas também foram proibidas de entrar em qualquer parque público por um ano por terem “acampado” em Aston e se recusado a sair. E Matilda Bliss, que é trans, se disse ofendida por ter tido o seu gênero confundido pelos policiais repetidas vezes.
O caso tomou proporções internacionais, motivando protestos de organizações de liberdade de imprensa. Apenas quatro jornalistas foram levados a julgamento no país desde 2018.
Kelan Lyons, repórter do jornal NCNewsline que cobriu o caso, conta que na primeira instância do julgamento, o juiz líder distrital do condado de Buncombe, Calvin Hill, afirmou “não haver evidências de que as duas seriam jornalistas.”
Segundo o jornal local Citizen Times, o juiz do Tribunal Superior do Condado de Buncombe, Tommy Davis, disse aos advogados que o júri se limitaria a considerar se os repórteres violaram uma lei do parque da cidade. Se os direitos constitucionais dos repórteres foram violados, isso será decidido pelo tribunal.
O advogado de defesa das jornalistas condenadas entrou com recurso após o veredito e o caso será levado ao Tribunal de Apelações da Carolina do Norte (EUA).
Entidades criticam decisão
Entidades locais e internacionais se manifestaram após as duas jornalistas serem condenadas, criticando a decisão tomada no mesmo dia em que um órgão federal dos EUA declarou que “ordens de despejo” e “toques de recolher” violam os direitos da imprensa.
Logo após o veredicto, a Freedom of the Press Foundation publicou uma declaração, juntamente com outros grupos de liberdade de imprensa e liberdades civis, condenando a decisão do júri.
“Não temos polícia secreta nos Estados Unidos”, disse Seth Stern, diretor de defesa da Fundação. “Os policiais não têm o direito de operar sem a imprensa e o escrutínio público só porque está escuro”.
Stern considera o veredito “perturbador” e uma derrota para o povo de Asheville. Ele criticou a decisão de não considerar a constitucionalidade das acusações e chamou a decisão de “violação flagrante da Primeira Emenda”.
A Repórteres Sem Fronteiras (RSF) também se manifestou publicamente, com Clayton Weimers, diretor executivo da RSF, comentando em nota sobre a decisão:
“É o trabalho de jornalistas apurar notícias quando e onde elas ocorrem, e fazer com que as autoridades respondam por seus atos. Esta decisão é lamentável e irá reduzir a liberdade de expressão na Carolina do Norte”, disse.
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