Londres – Criatura que se rebelou contra o criador em um momento crítico da invasão da Ucrânia pela Rússia, há dois meses, o dono do grupo de mercenários Wagner, Yevgeny Prigozhin, dado como morto em um acidente de avião nesta quarta-feira (23) pela mídia russa, também foi braço de Vladimir Putin em outra guerra: a das fake news e desinformação.
Os tentáculos do líder do exército de mercenários se estenderam por vários países, que se tornaram alvos de redes de influência para disseminar narrativas falsas e alimentar o sentimento pró-Rússia.
Isso inclui operações de desinformação e propaganda política nas redes sociais que interferiram em eleições de países do Ocidente, como EUA, Reino Unido e nações da Europa.
No comando de tudo estava Yevgeny Prigozhin, 62 anos, que em 2014 criou a organização de mercenários depois de se tornar próximo do presidente da Rússia e chegar a ser conhecido como o “chef” do Kremlin.
Ele entrou no mundo dos negócios vendendo cachorro-quente, após cumprir nove anos de prisão por roubo. Com talento empreendedor, criou um império de restaurantes, lojas de conveniência e serviços de catering usados pelo Kremlin – daí o apelido.
Em 2014, Prigozhin fundou o grupo Wagner, passando a recrutar e treinar mercenários para reforçar o exército russo e fazer missões marcadas por violência.
Ao mesmo tempo, o ex-aliado de Putin iniciava seu exército da desinformação, usando táticas de guerrilha nas redes sociais, que domina com maestria, em escala industrial.
Prigozhin: empresário morto era procurado pelos EUA
O governo americano ofereceu US$ 10 milhões por informações sobre o esquema de influencia nas eleições. Ele se tornou procurado pelo FBI.
Embora Prigozhin tenha por muito tempo negado liderança na desinformação, depois da guerra da Rússia com a Ucrânia, em que virou celebridade poderosa, ele mudou de postura.
Em novembro do ano passado, o fundador do grupo Wagner admitiu em postagens em redes sociais de sua empresa de catering que havia interferido nas eleições dos EUA em 2016; que continuava interferindo no país e que continuaria a fazê-lo, “com precisão, cirurgicamente, como sabemos fazer”
Em fevereiro deste ano, ele confirmou ter sido o criador da Internet Research Agency (IRA), uma operação de produção de fake news que motivou a sanção dos EUA, em um comunicado no Telegram:
“Nunca fui apenas o financiador da Internet Research Agency. Eu inventei, criei e a gerenciei por muito tempo.
Ela foi fundada para proteger o espaço de informação russo da propaganda grosseira e agressiva da narrativa anti-russa do Ocidente”.
Em um perfil do empresário apontado em 2022 como “Pessoa do Ano em Corrupção“, o projeto de jornalismo investigativo internacional Organized Crime and Corruption Project (OCCRP) destaca a fábrica de trolls como braço de Vladimir Putin.
“Sua chamada “Agência de Pesquisa da Internet”, que empregava trolls baratos para espalhar desinformação e propaganda, tornou-se famosa por suas tentativas de interferir na política dos EUA.
A partir dali, Prigozhin deixou de ser apenas mais um homem que enriquecera sob o regime de Putin. Ele havia se tornado um de seus instrumentos. E em pouco tempo, seu exército consistia em mais do que apenas trolls.”
Wagner na guerra da Ucrânia
Prigozhin, o fundador do grupo Wagner morto em um acidente de avião não agia apenas nas sombras. Na invasão da Ucrânia pela Rússia, ele usou a mídia digital para exibir seu poder e construir a imagem de peça fundamental no esquema militar de Vladimir Putin.
Prigozhin apareceu em uma série de vídeos em prisões russas, exortando os condenados a ganhar sua liberdade lutando pelo Wagner.
Mas especialistas dizem que esses recrutas muitas vezes acabam como buchas de canhão – e aqueles que se recusam a lutar “podem ter um fim terrível”, disse o OCCRP.
Enquanto a guerra se desenrolava na Ucrânia, a desinformação continuou avançando nas redes sociais.
Diversas plataformas, como o TikTok, anunciaram a derrubada de redes de desinformação associadas à Rússia, que provavelmente têm o envolvimento do Grupo Wagner.
Uma das mais recentes foi uma operação que simulava sites de veículos de imprensa e até do governo francês.
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Wagner e a influência da Rússia na África
A ação de desinformação do grupo Wagner sob o comando de Prigozhin era voltada também para a África, região com vários países apoiados pela Rússia
O Wagner alocou tropas e lutou ao lado de governos africanos para reprimir opositores e movimentos de guerra civil, ao mesmo tempo em que passou a comandar redes de influência para desinformação e fake news que alimentam o sentimento anti-colonialista.
A influência Yevgeny Prigozhin na desinformação promovida pela Rússia fez com que o grupo Wagner merecesse um relatório feito pela organização Repórteres Sem Fronteiras documentando sua ação na África e o impacto sobre a liberdade de imprensa.
“What It’s Like to Be a Journalist in the Sahel” ( Como é ser um jornalista em Sahel, em tradução livre) mostra em 40 páginas como o trabalho da imprensa tem sido prejudicado em uma região em que proliferam milícias armadas, governos autoritários e influência da Rússia.
A RSF denunciou a atuação do que chamou de “mercenários da informação” em países como o Mali, ex-colônia francesa.
“A aproximação do governo com a Rússia é é acompanhada por uma retórica fundamentada no sentimento anti-francês, com referências às relações com “nossos parceiros russos”.
“Esta estratégia de comunicação, sobretudo nas redes sociais, deve-se muito à influência da empresa militar russa privada Wagner, que tem uma presença significativa no Mali desde 2020.”
Um estudo publicado pelo instituto de pesquisa militar francês IRSEM citado pela RSF analisou o “suporte de informação para a implantação do grupo Wagner no Mali”.
Eles o definem como “apoio de informação para a presença não oficial da Rússia, promovendo conteúdo favorável aos paramilitares de Wagner, endossando suas ações por meios midiáticos e culturais, estabelecendo ligações com potenciais apoiadores locais e, em maior escala, legitimando a cooperação entre a Rússia e Mali e desacreditando seus detratores.”
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Putin x Prigozhin: aliado morto virou inimigo do antigo chefe
Depois de uma onda de rumores sobre desentendimentos entre o Kremlin e o grupo Wagner, a aliança entre Yevgeny Prigozhin e o regime de Vladimir Putin se rompeu de forma violenta em junho.
O presidente foi à TV para dizer que o ex-“chef” deu uma “facada pelas costas”. Ele foi acusado de traição e chegou a ameaçar invadir Moscou para derrubar Putin.
Ironicamente para quem admitiu comandar a guerra da desinformação em nome de Vladimir Putin, Yevgeny Prigozhin disse que Moscou “mentiu ao público” sobre o motivo da invasão da Ucrânia.
Na semana do motim, ele postou um vídeo em seu canal no Telegram, afirmando:
“O Ministério da Defesa está tentando enganar o público e o presidente e espalhar a história de que houve níveis insanos de agressão do lado ucraniano e que eles iriam nos atacar junto com todo o bloco da Otan”.
A “revelação” tardia torna ainda mais difícil encontrar a verdade no ambiente de fake news e desinformação que já havia na Rússia antes da guerra com a Ucrânia e se tornou ainda pior depois dela, com a providencial ajuda de Yevgeny Prigozhin.
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