Londres – Mais de quatro anos depois de o projeto destinado a tornar o Reino Unido “o lugar mais seguro do mundo para crianças online” ter começado a tramitar, a ambiciosa nova lei de mídias sociais do país foi finalmente aprovada nesta terça-feira (19) pela Câmara dos Lordes e entra em vigor após sanção do rei Charles III, prometendo vida dura para as plataformas. 

A Online Safety Bill (Lei de Segurança Online) amplia o rigor sobre as Big Techs, prevendo multas que podem chegar a 18 milhões de libras (R$ 108 milhões) ou 10% da receita anual global, o que for maior, se obrigações como a de remover conteúdos prejudiciais forem descumpridas. 

A demora deveu-se principalmente à tentativa de conciliar a proteção a crianças e pessoas alvo de discurso de ódio com a liberdade de expressão. O ponto nevrálgico sempre foi a quebra do princípio do anonimato nas redes sociais, como defende o governo, que ao mesmo tempo dificulta a localização de criminosos online mas também assegura que pessoas perseguidas ou discriminadas possam usar as redes para denunciar e pedir ajuda. 

Lei de mídias sociais e o dever de cuidar 

O caminho para aprovar a lei, cuja abrangência é considerada sem precedentes em países ocidentais, foi longo.  

A ideia de uma regulamentação das mídias sociais digitais começou a avançar de forma mais concreta no Reino Unido em 2018, como consequência da morte trágica no ano anterior da adolescente Molly Russel, de 14 anos.

Ela tinha acessado conteúdo de automutilação e suicídio antes de tirar a própria vida. 

A proposta de regulamentação foi apresentada pela primeira vez ao Parlamento no governo da ex-primeira-ministra Theresa May, em abril de 2019. Passou pela administração de Boris Johnson e chegou a ser anunciada pela rainha Elizabeth como uma das leis que entrariam em vigor no país em 2022, em uma fala da monarca na abertura dos trabalhos do Parlamento.

Agora, chega ao final com o país sobre o comando de Rishi Sunak.

Ela é baseada no conceito de Duty of Care (dever de cuidar), colocando o Estado na posição de proteger os vulneráveis, sobretudo crianças. E torna as plataformas legalmente obrigadas a protegerem seus usuários – o que poderá ser contestado em tribunais pelas Big Techs. 

Apesar de suas boas intenções, a lei é criticada, entre outras razões, por permitir que o órgão regulador de telecomunicações do governo (Ofcom) e as empresas de mídia social decidam sobre o que deve ou não ser postado nas redes sociais, com riscos de interferências políticas ou alinhadas a interesses comerciais.

Quando a lei entrar em vigor, as plataformas ficarão obrigadas a remover postagens associadas a violência sexual extrema, automutilação, suicídio e comportamento controlador ou coercitivo, sob pena de receberem penas pesadas. 

Terrorismo, fraude e imigração ilegal também no alvo da lei 

Embora a regulamentação sempre tenha sido vendida pelo governo como uma iniciativa de proteção a crianças e pessoas vulneráveis, há também outros tópicos não relacionado, como imigração ilegal e tráfico humano, fraude, venda de drogas e marcas e terrorismo, bem como crueldade animal. 

Isso dará meios ao governo de identificar criminosos e ameaças terroristas, forçando as plataformas a revelarem dados sobre as contas. 

Mas menores de idade são a principal bandeira. O governo promete rigor com as plataformas de mídia social, com” uma abordagem de tolerância zero para proteger as crianças e garantir que as plataformas de mídia social sejam responsabilizadas pelo conteúdo que hospedam”, conforme o comunicado oficial: 

“Se não agirem rapidamente para prevenir e remover conteúdos ilegais e impedir que as crianças vejam material que lhes é prejudicial, como bullying, enfrentarão multas significativas que poderão atingir milhões de libras.

Em alguns casos, seus chefes podem até enfrentar a prisão.”

A nova lei de mídias sociais obriga também as plataformas a imporem limites de idade e medidas de verificação, bem como a publicarem avaliações de risco e “fornecerem a pais e crianças maneiras claras e acessíveis de reportar problemas on-line quando eles surgirem”. 

Um grande aliado do governo britânico na aprovação da lei foi a organização de proteção aos direitos da criança NSPCC (Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra Crianças, ou National Society for the Prevention of Cruelty to Children).

A entidade luta contra a implantação da criptografia de ponta a ponta nos serviços de mensagem do Facebook e do Instagram, sob o argumento de que assediadores abordam menores de idade protegidos pela impossibilidade de serem identificados. 

Peter Wanless, CEO da NSPCC, disse: 

“É um dia importante para as crianças e finalmente resultará nas proteções inovadoras que elas devem esperar online.

Na NSPCC, ouvimos as crianças sobre os níveis completamente inaceitáveis ​​de abuso e danos que enfrentam online todos os dias. É por isso que temos feito fortes campanhas pela mudança ao lado de corajosas vítimas, famílias, jovens e parlamentares para garantir que a legislação resulte num mundo online muito mais seguro para as crianças.”

Proteção online para crianças e adultos 

Ao defender a nova lei, o governo britânico argumenta que além de proteger fortemente as crianças, seus dispositivos permitem que os adultos assumam o controle do que veem nas mídias sociais, com três estágios de proteção:

  • Garantia de que o conteúdo ilegal terá que ser removido
  • Responsabilização legal nas plataformas de mídia social para fazer cumprir as promessas que fazem aos usuários quando se inscrevem, por meio de termos e condições
    Opção de filtrar conteúdo prejudicial, como bullying

Também foram adicionadas ao projeto dispositivos para combater fraude e a violência online contra mulheres e meninas. O objetivo do governo é facilitar a condenação de alguém que partilha imagens íntimas sem consentimento, incluindo deepfakes.

Pessoas consideradas culpadas deste delito grave podem pegar até seis meses de prisão.

De acordo com o projeto, as maiores plataformas de mídia social terão ainda que impedir que os usuários sejam expostos a anúncios fraudulentos, bloqueando e removendo golpes.

Lei de mídia contempla crueldade animal 

Há ainda obrigatoriedade de as empresas de mídias sociais impedirem atividades que promovam crueldade animal.

Mesmo que esta atividade ocorra fora do Reino Unido mas seja vista pelos usuários do país, as empresas serão forçadas a retirar as postagens. 

Segundo o governo, antecipando a entrada em vigor do projeto de lei, as maiores empresas de mídia social já começaram a agir. O Snapchat começou a remover contas de usuários menores de idade e o TikTok implementou uma verificação de idade mais forte.

Melanie Dawes, presidente-executiva da Ofcom, encarregado de fazer cumprir a lei, disse que logo após o projeto receber o consentimento real serão feitas consultas sobre o primeiro conjunto de padrões a serem cumpridos pelas empresas de tecnologia.