A possível eleição de Javier Milei para a presidência da Argentina desperta diversas preocupações – e uma delas é com o futuro da liberdade de imprensa e confiança no jornalismo. 

O país é um dos melhores da América Latina no ranking Global Press Freedom da organização Repórteres Sem Fronteiras, situando-se em 40º lugar geral (atrás apenas da Costa Rica, Trinidad e Tobago e Jamaica), enquanto o Brasil está em 92º.

Mas os embates de Milei com jornalistas durante a campanha e declarações agressivas contra a imprensa, no mesmo estilo de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, preocupam os que temem os efeitos dessas práticas, que muitas vezes levam seguidores até a agressões físicas contra jornalistas. 

Antes da eleição, bate-boca de Milei com jornalista em coletiva

Um dos casos mais recentes foi um bate-boca do candidato com um jornalista durante uma coletiva na semana passada.

Milei se aborreceu porque o repórter da rádio Del Plata falava ao telefone transmitindo a reportagem ao vivo, e o interpelou: “aqueles quer estão falando querem continuar na coletiva? 

Ao ser informado que o repórter estava fazendo o seu trabalho, Milei seguiu irritado, pedindo que ele encontrasse uma forma de não atrapalhar a entrevista, e arrematou generalizando a bronca: “vocês são rudes”. 

O episódio  é mais um dos vários em que ele demonstra irritação contra a imprensa. Mas Milei vai além e tem processo aberto contra vários jornalistas argentinos.

Ele já processou pelo menos cinco profissionais por acusações que incluem “afetação da honra”, “dano moral”,  e“direito de resposta”, exigindo um milhão de pesos (cerca de R$ 14 mil) de cada um dos jornalistas. 

Esses processos podem não resultar em condenação, mas servem para consumir recursos e abalar a reputação dos profissionais de imprensa. São vistos como uma forma moderna de silenciar o jornalismo crítico. 

A irritação se estende à mídia internacional. Há três semanas, ele cancelou uma entrevista confirmada com a CNN, que seria feita por um conhecido apresentador da CNN en Espanhol dos EUA.

Fernando del Rincón viajou de Atlanta, onde é baseado, para Buenos Aires para a entrevista, cancelada na véspera. 

Enquanto isso, Javier Milei ganha popularidade entre jovens da geração Z, que se informam mais pelas plataforma digitais do que pela mídia tradicional, alavancado pela presença nas redes sociais, especialmente no TikTok. 

Com isso, o jornalismo tradicional vai sendo enfraquecido, com efeitos para o direito da sociedade de se informar em fontes confiáveis e para a democracia. 

Liberdade de imprensa na Argentina antes de Milei 

Se Milei sair vitorioso após os dois turnos da eleição (o próximo será em novembro) e mantiver o mesmo tom, a Argentina pode viver um retrocesso em liberdade de imprensa, em uma região em que a maioria dos países aparece em situação problemática ou grave e ela parecia uma ilha de tranquilidade. 

quadro de países do ranking de liberdade de imprensa RSF

Segundo a RSF, os maiores problemas no ecossistema de mídia da Argentina são a concentração da propriedade dos meios de comunicação social (uma característica comum na América Latina), a polarização, a falta de políticas governamentais que garantam o pluralismo dos meios de comunicação social e os baixos salários dos jornalistas. 

Na análise sobre segurança, um dos seis critérios que compõem a pontuação, a situação até abril deste ano (data da publicação do relatório) era diferente da de vários outros países, incluindo o Brasil sob Jair Bolsonaro. 

“Os ataques físicos contra jornalistas são raros e nenhum jornalista foi preso ou assassinado desde 2000. Os ataques ou ameaças contra os meios de comunicação social e os repórteres são condenados tanto pelo público como pelos políticos.

Os jornalistas podem, no entanto, ser alvo de violência policial durante grandes manifestações ou de intimidação por parte de organizações criminosas (drogas, tráfico de seres humanos, corrupção das forças de segurança).

Em Rosário, a terceira maior cidade do país, os traficantes de droga começaram a atacar os meios de comunicação e os jornalistas.”

Isso foi antes de uma possível eleição e Javier Milei. Os sinais de agressividade preocupam jornalistas e entidades como a Academia Nacional de Jornalismo (ANP, na sigla em espanhol). 

 No discurso de encerramento da campanha antes das eleições primárias, Milei se referiu aos jornalistas como como “roñosos”, um termo associado a sujo e deteriorado.

Dias depois, a ANP distribuiu um comunicado condenando declarações caluniosas do candidato ao jornalismo e a reação de seus seguidores às provocações: 

“Partidários de Milei entoaram, diante do candidato, refrões insultuosos contra jornalistas com nomes e sobrenomes e com acusações comprovadamente falsas”.

Enquanto até o relatório da RSF a segurança física de jornalistas na Argentina não era um problema, ela já começa a ser. 

A jornalista Gabriela Radice, da TV Pública, teve seu microfone tomado e foi agredida quando acompanhava Javier Milei votando nas primárias. 

A animosidade contra o jornalismo já vinha sendo estimulada pelo atual presidente, Alberto Fernández, que chegou a acusar os meios de comunicação de “intoxicarem a cabeça das pessoas”.

Mas a julgar pelos sinais iniciais de Javier Milei, a temperatura pode subir mais se ele sair vitorioso nas urnas.