Dias antes da vitória de Javier Milei no segundo turno das eleições na Argentina, realizado neste domingo (19), um documento da Sociedade Americana de Imprensa (SIP, na sigla em inglês) sobre liberdade de imprensa na região destacou as preocupações de organizações de jornalismo com a relação tensa do presidente eleito com a mídia, e o risco de que isso venha a deteriorar ainda mais a situação no país.
Segundo o relatório da SIP, apresentado e debatido em sua assembleia geral realizada no México no dia 10 de novembro, “Milei praticou mais de vinte agressões e intimidações contra jornalistas desde insultos a processos judiciais”, chegando a dizer que muitas das críticas que recebe partem de profissonais supostmente corruptos.
O Índice Chaputelpec de Liberdade de Imprensa da organização lista a Argentina em 11º lugar entre 22 países, apontando problemas como violência por parte do nacotráfico em Rosário, ataques e assédio judicial a jornalistas e as ameaças de Milei, que vão desde ofensas até sinais de que pode “mudar o padrão publicitário oficial”, segundo a SIP.
Antes de Milei, Argentina era uma das melhores em liberdade de imprensa
A deterioração da saúde financeira dos veículos argentinos coloca em risco a pluralidade de imprensa, e os ataques comprometem a confiança do público no jornalismo.
O país figurou este ano como um dos melhores da América Latina no ranking Global Press Freedom da organização Repórteres Sem Fronteiras, situando-se em 40º lugar geral (atrás apenas da Costa Rica, Trinidad e Tobago e Jamaica), enquanto o Brasil está em 92º.
Mas os embates de Javier Milei com jornalistas durante a campanha e declarações agressivas contra a imprensa, no mesmo estilo de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, sugerem que os temores da SIP não são infundados e que esse quadro pode mudar.
O documento da Sociedade Interamericana de Prensa, publicado na primeira semana de novembro, trouxe uma declarção conjunta de várias entidades destacando as preocupações:
“A Academia Nacional de Jornalismo, Adepa, Fopea e a Fundação LED reprovaram a inclinação de Milei à calúnia contra jornalistas e contra a mídia.
O candidato declarou repetidamente que, se chegar à Presidência, eliminará a publicidade oficial, confundindo a diretriz pública com um subsídio, o que contradiz a posição da Suprema Corte de Justiça argentina que reconhece a publicidade oficial como um mecanismo que contribui para o acesso à informação e à liberdade de expressão.”
O ex-presidente Donald Trump, que se notabililzou pela guerra com a grande imprensa, foi um dos primeiros a parabenizar o presidente eleito da Argentina, usando a frase “Make Argentina Great Again”, uma adaptação de seu slogan para a América.
Elon Musk, que igualmente vive em guerra com a mídia, também saudou o novo presidente e a era de prosperidade que prevê para o país.
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Ataques de Milei e de seus apoiadores à mídia
OS ataques à imprensa não partem apenas de Javier Milei, mas também de integrantes da coalizão que o elegeu.
No dia 15 de novembro, a Federação Argentina de Trabalhadores da Imprensa repudiou as ameaças feitas pela deputada eleita pela coalizção La Libertad Avanza (LLA), Lilia Lemoine, de que os meios de comunicação estatal seriam privatizados.
A LLA negou o plano, mas no dia seguinte à vitória Milei confirmou em entrevista a intenção de privatizar .
Os acontecimentos durante a campanha já vinham construindo um cenário de incerteza e animosidade.
Em uma coletiva antes do segundo turno, Javer Milei ficou irritado com um repórter da rádio Del Plata, que falava ao telefone transmitindo a reportagem ao vivo, e disse: “aqueles quer estão falando querem continuar na coletiva?
Ao ser informado que o repórter estava fazendo o seu trabalho, Milei seguiu irritado, pedindo que ele encontrasse uma forma de não atrapalhar a entrevista, e arrematou generalizando a bronca: “vocês são rudes”.
O novo prsidente da Argentina já processou pelo menos cinco profissionais por acusações que incluem “afetação da honra”, “dano moral”, e“direito de resposta”, exigindo um milhão de pesos (cerca de R$ 14 mil) de cada um dos jornalistas.
Esses processos podem não resultar em condenação, mas servem para consumir recursos e abalar a reputação dos profissionais de imprensa. São vistos como uma forma moderna de silenciar o jornalismo crítico.
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A irritação se estende à mídia internacional. Durante a campanha, ele cancelou uma entrevista confirmada com a CNN, que seria feita por um conhecido apresentador da CNN en Espanhol dos EUA.
Fernando del Rincón viajou de Atlanta, onde é baseado, para Buenos Aires para a entrevista, cancelada na véspera.
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Enquanto isso, Javier Milei ganhou popularidade entre jovens da geração Z, que se informam mais pelas plataforma digitais do que pela mídia tradicional, alavancado pela presença nas redes sociais, especialmente no TikTok.
Com isso, o jornalismo tradicional vai sendo enfraquecido, com efeitos para o direito da sociedade de se informar em fontes confiáveis e para a democracia.
Liberdade de imprensa na Argentina antes de Milei
A vitória de Milei pode levar a Argentina pode viver um retrocesso em liberdade de imprensa, em uma região em que a maioria dos países aparece em situação problemática ou grave e ela parecia uma ilha de tranquilidade, como mostra o índice de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras.
Segundo a RSF, os maiores problemas no ecossistema de mídia da Argentina são a concentração da propriedade dos meios de comunicação social (uma característica comum na América Latina), a polarização, a falta de políticas governamentais que garantam o pluralismo dos meios de comunicação social e os baixos salários dos jornalistas.
Na análise sobre segurança, um dos seis critérios que compõem a pontuação, a situação até abril deste ano (data da publicação do relatório) era diferente da de vários outros países, incluindo o Brasil sob Jair Bolsonaro.
“Os ataques físicos contra jornalistas são raros e nenhum jornalista foi preso ou assassinado desde 2000. Os ataques ou ameaças contra os meios de comunicação social e os repórteres são condenados tanto pelo público como pelos políticos.
Os jornalistas podem, no entanto, ser alvo de violência policial durante grandes manifestações ou de intimidação por parte de organizações criminosas (drogas, tráfico de seres humanos, corrupção das forças de segurança).
Em Rosário, a terceira maior cidade do país, os traficantes de droga começaram a atacar os meios de comunicação e os jornalistas.”
Isso foi antes de Javier Milei. Os sinais de agressividade preocupam jornalistas e entidades como a Academia Nacional de Jornalismo (ANP, na sigla em espanhol).
No discurso de encerramento da campanha antes das eleições primárias, Milei se referiu aos jornalistas como como “roñosos”, um termo associado a sujo e deteriorado.
Dias depois, a ANP distribuiu um comunicado condenando declarações caluniosas do candidato ao jornalismo e a reação de seus seguidores às provocações:
“Partidários de Milei entoaram, diante do candidato, refrões insultuosos contra jornalistas com nomes e sobrenomes e com acusações comprovadamente falsas”.
Enquanto até o relatório da RSF a segurança física de jornalistas na Argentina não era um problema, ela já começa a ser.
A jornalista Gabriela Radice, da TV Pública, teve seu microfone tomado e foi agredida quando acompanhava Javier Milei votando nas primárias.
A animosidade contra o jornalismo já vinha sendo estimulada pelo atual presidente, Alberto Fernández, que chegou a acusar os meios de comunicação de “intoxicarem a cabeça das pessoas”.
O Índice Chapultepec de Liberdade de Imprensa nas Américas caiu ao seu ponto mais baixo dos últimos quatro anos, com quedas na pontuação de 18 dos 22 países analisados pelo barômetro da Sociedade Interamericana de Imprensa. O Brasil ficou em 13º lugar, sendo um dos que melhorou a posição em relação ao ano passado.
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