Londres – Depois de semanas de manifestações do meio jornalístico e de parlamentares contra a possível venda do jornal Daily Telegraph para um consórcio financiado pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, de Abu Dhabi, o governo britânico resolveu intervir e abriu uma investigação para examinar a possibilidade de risco ao interesse público.
Na última segunda-feira, o grupo que edita o jornal foi devolvido pelo banco Lloyd’s à família Barclay, depois de ter sido confiscado em julho devido ao não pagamento de uma dívida bilionária. Quem pagou a conta foi o consórcio, e as tratativas estabelecem que ele assumirá o controle, o que configuraria a posse de um jornal por um governo estrangeiro.
Por isso, a Secretária de Cultura e Mídia, Lucy Fraser, emitiu um Aviso de Intervenção de Interesse Público (PIIN, na sigla em inglês), e encaminhou o caso para ser investigado pela autoridade de concorrência e pelo Ofcom, órgão regulador de mídia do país, com prazo até o fim de janeiro para um veredito.
A saga do jornal Daily Telegraph
Ao contrário de outros títulos vendidos nos últimos anos, como o Washington Post, o grupo Telegraph, também dono da revista Spectator e do Sunday Telegraph, não ia mal.
O problema é que ele foi colocado como garantia de um vultoso empréstimo tomado pelos irmãos David e Frederick Barclay, que comandavam um império empresarial nas áreas de construção, hotelaria e varejo mas acabaram brigando em vida.
David morreu em 2021. Em julho deste ano, o Lloyds Bank apreendeu os títulos do grupo Telegraph por conta de uma dívida de £ 1,15 bilhão. O banco não quer operar o negócio e abriu uma concorrência para encontrar interessados.
Muitos nomes se apresentaram, incluindo donos de outras empresas jornalísticas, até que a própria família Barclay emergiu como candidata provável – só que financiada pelo IMI (International Media Investments), controlado pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nayian.
Segundo os que se opõem a negócio, ele é um proeminente membro da família que comanda Abu Dhabi, e não é possível distinguir o que são recursos pessoais, corporativos e do Estado.
A venda apavora muitos setores porque o Telegraph, fundado há mais de 160 anos, é um dos três grandes da mídia britânica – ao lado do The Times e The Guardian.
E é o mais eloquente porta-voz das narrativas da direita conservadora, com posição ultramonarquista e simpática a teses nacionalistas como a redução de imigrantes.
Leia também | Chefe da COP28 choca ao dizer que ‘não há ciência’ por trás de pressões contra combustíveis fósseis
O grupo interessado no jornal britânico
O IMI formou uma joint-venture com o RedBird Capital, empresa de private equity americana. No comando da operação está o ex-CEO da CNN, Jeff Zucker, que perdeu o cargo no passado depois de uma série de confusões e em meio a um declínio da audiência da rede.
Se a venda do Daily Telegraph se concretizar, ele não será o primeiro jornal britânico nas mãos de estrangeiros. O grupo News Corp., dono do The Times, concorrente do Telegraph, e do tabloide The Sun, pertence ao australiano Rupert Murdoch.
Até russos são tolerados. O Evening Standard, tabloide que antes da pandemia era um dos mais lidos do país, pertence a um ex-agente da KGB, Alexander Lebedev, e ao seu filho Evgeny. Eles também compraram parte do The Independent.
Então, por que a reação? Porque em tese, seria a primeira vez que um Estado se tornaria dono de um jornal no Reino Unido. O grupo árabe já é dono do time de futebol Manchester United, mas o avanço sobre a imprensa incomodou.
Leia também | Israel bloqueia TV libanesa concorrente da Al Jazeera sob alegação de ameaça à segurança nacional
Entre os que se posicionaram contra a venda está o jornalista Charles Moore, uma autoridade da mídia, que já dirigiu os três jornais do grupo e escreveu uma festejada biografia da ex-premiê Margareth Tatcher, assinou um artigo de opinião no Telegraph em que classifica a “nacionalização” como “imperdoável”.
Moore, que detém o título de Sir pela sua contribuição à imprensa, usa a palavra nacionalização para dizer que se o próprio governo britânico estivesse incorporando um jornal, isso seria visto como uma tomada de poder sem precedentes pelo Estado.
No entanto, diz ele, uma nacionalização agora parece possível, só que “por um Estado árabe que não tem liberdade de imprensa“.
Leia também | De insultos a cortes de verbas: como fica a liberdade de imprensa na Argentina após eleição de Milei?
Redação do Daily Telegraph no escuro
Na semana passada, o editor do Telegraph, Chris Evans, enviou um email à equipe para responder aos que perguntaram sobre o futuro da independência editorial. “No momento, não sei mais do que o que você já leu”.
Jeff Zucker garante que haverá independência, e acusa concorrentes de “jogarem lama” para obstruir o negócio. Ele pode ter certa razão, pois a News Corp. de Murdoch quer ficar com a The Spectator.
Mesmo sob o risco de o negócio não se concretizar, o sheik Mansour resolveu arriscar e saldou o empréstimo da família Barclay com o Lloyds, primeira etapa para a aquisição.
Mas a ordem emitida por Lucy Frazer determinando a investigação estabelece também que até a conclusão das investigações nenhuma mudança de controle pode ser feita, inclusive no conselho.
Leia também | Rupert Murdoch e a ascensão e queda dos barões da imprensa: quanto poder ainda têm os jornais?