Londres – Os levantamentos de mortes de jornalistas em 2023 publicados por algumas das organizações de liberdade de imprensa antes de o ano acabar trazem boas e más notícias, além de uma certa confusão sobre os critérios e uma ameaça de processo judicial contra a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF).
Eles sempre foram diferentes, mas agora as discrepâncias se acentuaram devido à forma de contabilizar mortes na guerra de Gaza. A RSF incluiu apenas os que morreram comprovadamente a serviço, e o sindicato de jornalistas local, afiliado à Federação Internacional de Jornalistas, exige que sejam listados também as vítimas de bombardeios em suas casas.
As discrepâncias também estão relacionadas às circunstâncias da morte e ao critério para definir quem é jornalista – somente os empregados em uma organização de mídia? Ou também freelancers formados em universidades e registrados em sindicatos? E os que praticam o jornalismo nas redes sociais de forma independente sem formação acadêmica ou sindicalização?
45 mortes de jornalistas em 2023, segundo a RSF
O relatório da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) afirma que 45 jornalistas morreram este ano, o menor número desde 2003. Ano passado foram 51.
Quem puxou o resultado para baixo foi a América Latina, onde houve 26 vítimas em 2022. Este ano foram seis – quatro no México, uma na Colômbia e outra no Paraguai.
No entanto, no monitoramento regular da Unesco entram duas mortes de jornalistas no Haiti, amplamente documentadas pela mídia internacional como resultado do trabalho profissional. O total de mortes no ano, segundo a organização, foi de 65.
Já o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ) listou apenas uma morte no país centro-americano. Enquanto isso, a Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) contou 94 mortes, contra 67 em 2022. O dado inclui todas as fatalidades na guerra entre o Hamas e Israel, até as de profissionais com residências atingidas por bombardeios.
A controvérsia dos jornalistas mortos em Gaza
Pela metodologia da Federação, 68 profissionais de imprensa morreram no conflito – 72% de todas as mortes de 2023, Ou 68, nas contas do CPJ até 23 de dezembro.
Já no levantamento da RSF, 17 jornalistas perderam a vida no exercício das suas funções em Gaza (13), no Líbano (3) e em Israel (1), elevando para 23 o número de número de jornalistas mortos em conflitos este ano, contra 20 em 2022, primeiro da guerra na Ucrânia – taxa absurdamente alta para dois meses de confrontos.
Jornalistas também morreram cobrindo confrontos em Camarões, no Mali, no Sudão, na Síria e na Ucrânia. Foi a primeira vez que o número superou o de vítimas em zonas de paz, disse a organização.
Mas em nota divulgada no dia 15 de dezembro, o Sindicato dos Jornalistas Palestininos (PJS), que não faz distinção entre o número de mortos no cumprimento do dever e o número total de mortos, acusou a RSF de “encobrir a imagem da ocupação” de “proteger Israel de qualquer responsabilidade perante a justiça internacional”, de “preconceito a favor da ocupação” e de “falta de profissionalismo”.
A RSF defendeu seu critério, e disse em um comunicado “lamentar profundamente que o PJS, membro da Federação Internacional de Jornalistas (IFJ), esteja ameaçando com uma ação judicial, o que é muito inapropriado à luz dos fatos e das questões em jogo”.
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Quem entra na conta de profissionais de imprensa mortos?
As diferenças também estão relacionadas a uma pergunta cada vez mais difícil de responder: quem é jornalista?
A lista da IFJ inclui jornalistas e trabalhadores de meios de comunicação, mas não especifica se blogueiros ou donos de canais de notícias nas redes sociais são considerados como tal.
A Unesco explica sua metodologia:
“Jornalistas, meios de comunicação trabalhadores e produtores de mídia social envolvidos em atividades jornalísticas, em linha com Decisões do IPDC sobre a segurança dos jornalistas.
Esta definição também se alinha com a interpretação ampla […] do jornalismo como”função compartilhada” por uma ampla gama de atores, incluindo repórteres e analistas profissionais em tempo integral, bem como blogueiros e outros que se envolvem em autopublicação impressa ou na Internet.”
A RSF faz uma distinção entre profissionais, trabalhadores na mídia (como motoristas) e não-profissionais, mas junta todos em sua soma final.
Por que o número de jornalistas mortos caiu este ano?
Partindo-se da premissa de que mortes de jornalistas em casa não são associadas ao exercício da profissão, com as que acontecem na cobertura de um fogo cruzado ou por pura vingança, a redução de casos mostrada pela RSF é uma boa notícia, mas não necessariamente todos os fatores que contribuíram para ela são positivos.
A entidade atribui a queda em certas áreas a um aumento da segurança dos jornalistas, mais bem treinados e equipados para atuar em conflitos armados.
Entre essas áreas não está Gaza. Jornalistas internacionais não puderam entrar nos territórios, e as reportagens têm sido feitas pelos que estavam lá dentro, nem todos bem equipados. Há relatos confirmados de ataques diretos e não acidentais.
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O outro lado da moeda, de acordo com a RSF, é que em algumas regiões, o medo dos riscos estaria causando autocensura, inibindo reportagens e denúncias sobre corrupção e crime organizado – e o número de mortes em reação a elas.
Segundo a organização, essas coberturas seguem extremamente arriscadas, com 15 mortes associadas a elas em 2023, sobretudo na América Latina e na África.
Isso pode explicar a queda de mortes no México, pois o país segue violento para a imprensa. Um exemplo foi o sequestro de três jornalistas na mesma semana, em novembro.
Os três saíram com vida, mas o recado serviu para lembrar que não vale a pena mexer em vespeiro – para sorte de quem se preserva mas azar da sociedade, que perde com a falta de informação.
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