Londres – Nação democrática, situada na região do mundo mais segura para jornalistas e listada em 6º lugar no ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, a Holanda não está imune a ameaças contra profissionais de imprensa por meio de assédio judicial, levando a stress, prejuízos financeiros e autocensura.
É o que mostra um relatório da Free Press Unlimited, entidade global que promove a liberdade de imprensa com atuação em 50 países, apontando o avanço do assédio legal contra a mídia no país europeu.
O relatório “Um problema subestimado: pressão legal desproporcional sobre o jornalismo holandês” envolveu mais de 50 jornalistas, editores e advogados. Ele foi baseado em uma pesquisa realizada pela Associação Holandesa de Jornalistas (NVJ) em 2023, constatando que quase metade dos profissionais de mídia e 90% dos líderes de redações enfrentaram ameaças de processo judicial em reação a uma reportagem.
SLAPPS ameaçam liberdade de imprensa na Holanda
Os processos contra jornalistas, ativistas e organizações da sociedade civil movidos com o objetivo de intimidar ou de causar danos financeiros têm nome: SLAPP, sigla em inglês para “Strategic lawsuit against public participation”, ou processos estratégicos contra a participação pública, em tradução livre.
A sigla também pode ser associada à palavra slap, que significa “bofetada”, remetendo ao impacto vi0lento que esses processos causam sobre o jornalismo e sobre o direito da sociedade a receber informações completas e confiáveis sobre governantes, empresas e pessoas públicas.
Segundo o relatório da Free Press Unlimited, os efeitos da pressão legal sobre os jornalistas podem ser divididos no impacto financeiro dos processos, no tempo investido na preparação de respostas e nas consequências psicológicas – especialmente nos casos em que os jornalistas são atacados publicamente.
Estes efeitos são muitas vezes impulsionam a autocensura, aponta a organização, citando como exemplos atitudes como tornar as matérias menos incisivas, omitir informações para evitar conflitos jurídicos ou não prosseguirem com investigações.
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Impacto psicológico do assédio judicial
Além das implicações financeiras, a investigação mostra que o impacto psicológico no jornalista individual é subestimado. Embora alguns editores-chefes considerem que a pressão legal sobre os seus jornalistas não teve qualquer efeito ou que eles “não serão intimidados”, os jornalistas indicam que não se atrevem a falar sobre ameaças ou que estas consequências não podem ser discutidas abertamente com os chefes.
Nos casos mais graves, muitos deles indicam que isso causou forte estresse, ansiedade e carga psicológica. Os jornalistas também relataram que muitas vezes se sentem sozinhos e com pouca solidariedade por parte dos colegas.
A pesquisa mostrou que o impacto do assédio judicial é mais forte entre freelancers, meios de comunicação locais e pequenos veículos de imprensa, situação que não é diferente da de outros países. Este grupo é o mais vulnerável aos possíveis efeitos e, portanto, é mais propenso a recorrer à autocensura.
Mas jornalistas e títulos de grandes organizações jornalísticas também sofrem as consequências da pressão legal, apesar da proteção que o emprego de um veículo mais conhecido oferece, nem sempre suficiente. Em pelo menos um caso na Holanda, o assédio se transformou em tragédia.
Em 2021, o conhecido jornalista investigativo holandês Peter de Vries foi assassinado quando saída da redação, no centro de Amsterdã. O crime foi atribuído ao narcotráfico, e o julgamento ainda não chegou ao fim.
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Lei europeia contra SLAPPs
Na semana passada, o Conselho Europeu assina a tão esperada directiva europeia para proteger jornalistas e defensores dos direitos humanos contra SLAPPs. Isto deve ser convertido em lei holandesa dentro de dois anos.
Em fevereiro, o Parlamento Europeu aprovou por 546 votos a favor, 47 contra e 31 abstenções uma nova lei para garantir que indivíduos e organizações que trabalham em questões de interesse público, como direitos fundamentais, alegações de corrupção, proteção da democracia ou a luta contra a desinformação recebam proteção contra processos judiciais infundados e abusivos.
Ela deverá ser convertida em lei local na Holanda e em outros países do bloco em um prazo de dois anos, suprindo a lacuna jurídica existente na maioria das nações.
Os autores do relatório da Free Press Unlimited salientaram que a atual legislação holandesa não oferece proteção suficiente contra casos de SLAPP. O Código Civil prevê o abuso do direito processual, mas na prática isso não oferece garantia contra SLAPPs.
O estudo recomenda uma cláusula especial contra o abuso, permitindo que as ações judiciais movidas com objetivo de intimidação sejam arquivadas mais rapidamente pelos tribunais, protegendo assim a liberdade de expressão.
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