Confirmada nas urnas neste domingo (2) como nova presidente do MĂ©xico, Claudia Sheinbaum receberĂĄ um paĂ­s reconhecido como um dos mais perigosos do mundo para a imprensa. 

Sheinbaum concorreu pela coligação Sigamos Haciendo Historia, da qual faz parte a agremiação do atual presidente, AndrĂ©s Manuel LĂłpez Obrador, cujo governo iniciado em 2018 foi marcado por um nĂșmero recorde de assassinatos de profissionais de imprensa e por ataques verbais do lĂ­der da nação a jornalistas que criticaram seus atos. 

O paĂ­s ocupa o 121Âș lugar entre 180 naçÔes no Global Press Freedom Index 2024  da organização RepĂłrteres Sem Fronteiras, e tem se mantido nos Ășltimos anos entre os primeiros em listas de jornalistas mortos e de impunidade para crimes contra imprensa feitas por diversas organizaçÔes. 

Desafio para o novo presidente do MĂ©xico 

A violĂȘncia contra a imprensa Ă© um desafio complexo para a nova presidente do MĂ©xico, pois nĂŁo depende somente do governo central – mas ele tem boa parte da responsabilidade em tentar reverter a situação. 

De acordo com um relatĂłrio publicado pela Anistia Internacional em conjunto com o ComitĂȘ de Proteção a Jornalistas (CPJ) em março, o paĂ­s Ă© o mais perigoso do HemisfĂ©rio Ocidental para o jornalismo, com nĂșmeros impressionantes: 

  • Desde a virada do sĂ©culo, pelo menos 141 jornalistas e outros profissionais de mĂ­dia foram mortos.
  • Pelo menos 61 dessas mortes estavam diretamente relacionadas ao trabalho.
  • De acordo com o Índice Global de Impunidade anual do CPJ, o MĂ©xico estĂĄ consistentemente classificado entre os 10 paĂ­ses com o maior nĂșmero de assassinatos de jornalistas que permanecem sem solução.
  • O MĂ©xico Ă© o paĂ­s com o maior nĂșmero de jornalistas desaparecidos no mundo, embora nenhum caso  tenha levado a uma condenação.

A maioria dos crimes ocorridos nos Ășltimos anos vitimou profissionais independentes ou de pequenos veĂ­culos regionais situados em regiĂ”es dominadas pelo crime organizado e pela corrupção. 

Embora nem todos os casos tenham sido investigados atĂ© o fim e a causa das parte das mortes nĂŁo tenha sido confirmada como relacionada ao trabalho, os jornalistas atacados tinham em comum o fato de escreverem ou falarem sobre corrupção e violĂȘncia local. 

No entanto, na visĂŁo das organizaçÔes de liberdade de imprensa, o governo central tem parte da responsabilidade, tanto na postura agressiva mantida por LopĂ©z Obrador, vista como um fator a incitar a violĂȘncia, quanto pela falta de medidas de proteção e pela impunidade. 

Este ano o ritmo de mortes estå sendo menor, com apenas um caso registrado até agora. Mas isso não é necessariamente um bom sinal.

Especialistas apontam a possibilidade do chamado “chilling effect” (efeito paralisante, em tradução livre), que estaria levando de profissionais de imprensa a jornalistas cidadĂŁos ao silĂȘncio para nĂŁo correrem riscos. 

RetĂłrica estigmatizante  do chefe da nação

Em sua anĂĄlise sobre a situação de liberdade de imprensa no MĂ©xico, a RSF destaca  que o presidente LĂłpez Obrador e outros integrantes do governo adotaram uma retĂłrica combativa e estigmatizante em relação Ă  imprensa, acusando frequentemente os jornalistas de apoiarem a oposição.

LĂłpez Obrador, presidente do MĂ©xico, Julian Assange, WikiLeaks

“Todas as quartas-feiras, o governo realiza uma sessĂŁo chamada “Quem Ă© quem nas notĂ­cias falsas desta semana”, em mais uma tentativa de desacreditar os jornalistas.

Durante seu mandato, LĂłpez Obrador criticou os jornalistas por sua falta de profissionalismo e descreveu a imprensa mexicana como “tendenciosa”, “injusta” e “a escĂłria do jornalismo”. 

Sua sucessora no cargo Ă© uma antiga aliada e uma cientista reconhecida. Detentora de um Ph.D em engenharia de energia, ela Ă© autora de mais de 100 artigos cientĂ­ficos sobre o tema e atuou como SecretĂĄria do Meio Ambiente da Cidade do MĂ©xico de 2000 a 2006 durante o mandato de LĂłpez Obrador como prefeito.

Em 2018, foi eleita para comandar a Cidade do MĂ©xico – a primeira mulher no cargo – e neste domingo tornou-se a primeira presidente na histĂłria do paĂ­s. 

Insegurança e crime organizado no MĂ©xico 

A insegurança que a novo presidente do MĂ©xico serĂĄ cobrado a resolver estĂĄ relacionada em parte a um problema maior, que Ă© a violĂȘncia generalizada que atinge o paĂ­s. 

A anĂĄlise da RepĂłrteres Sem Fronteiras no Global Press Freedom Index deste ano aponta que “o conluio entre funcionĂĄrios pĂșblicos e o crime organizado representa uma grave ameaça Ă  segurança dos jornalistas”.

Os jornalistas que cobrem temas políticos sensíveis ou crimes, especialmente em nível local, são ameaçados e, muitas vezes, mortos a tiros a sangue frio.

Outros sĂŁo raptados e nunca mais sĂŁo vistos, ou fogem para outras partes do paĂ­s ou para o estrangeiro como Ășnica forma de garantir a sua sobrevivĂȘncia. 

A organização responsabiliza o atual presidente, AndrĂ©s Manuel LĂłpez Obrador, por nĂŁo ter realizado as reformas necessĂĄrias para controlar esta violĂȘncia e impunidade.

Jornalistas assassinados sob proteção do Estado

A nova presidente do MĂ©xico deverĂĄ ser pressionada pelas organizaçÔes de liberdade de imprensa a rever o atual mecanismo federal de proteção a jornalistas. 

O relatĂłrio conjunto da Anistia Internacional e do ComitĂȘ de Proteção a Jornalistas publicado em março concentrou-se nesse tema, defendendo uma “necessidade urgente” de fortalecer o sistema, criado em 2012. 

De acordo com o documento, oito jornalistas foram mortos enquanto estavam inscritos no Mecanismo nos Ășltimos sete anos. 

“O Mecanismo Federal para a Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos e dos Jornalistas continua a ser uma parte crucial dos esforços do governo no MĂ©xico para tornar o paĂ­s um lugar mais seguro para os jornalistas, mas sĂł poderĂĄ cumprir esse papel se abordar adequadamente as suas prĂłprias falhas”, disse Jan. -Albert Hootsen, representante do CPJ no MĂ©xico.

“Depois de anos de incessante derramamento de sangue e impunidade corrosiva, chegou a hora de o Estado mexicano agir e mostrar que estĂĄ finalmente disposto a levar a sĂ©rio as suas obrigaçÔes em relação Ă  liberdade de imprensa.”

Em novembro de 2023 havia 651 jornalistas inscritos no Mecanismo: 469 homens e 182 mulheres. Mas o nĂșmero de pedidos de proteção rejeitados aumentou acentuadamente nos Ășltimos anos, de apenas um em 2020 para 14 em 2021, 49 em 2022 e outros 49 nos primeiros 11 meses de 2023, segundo o relatĂłrio. 

Quase todos os jornalistas com quem a Anistia Internacional e o CPJ falaram afirmaram que continuaram a sofrer incidentes de segurança depois de se inscreverem no Mecanismo. Muitos descreveram a resposta do sistema como lenta, burocrĂĄtica e sem empatia, minimizando riscos e nĂŁo levando em conta o gĂȘnero. 

RecomendaçÔes para reverter o quadro 

Entre outras recomendaçÔes, a Anistia Internacional e o CPJ apelaram Ă s autoridades mexicanas para que garantam o financiamento e formem adequadamente a equipe responsĂĄvel pelo  Mecanismo, reveja os processos de avaliação de risco e implementem uma perspectiva de gĂȘnero nos seus protocolos para melhor responder Ă s necessidades especĂ­ficas das mulheres jornalistas.

As organizaçÔes também pedem colaboração mais estreita entre o Mecanismo e os órgãos de investigação federais e estatais do México para abordar a impunidade e as causas profundas das ameaças e ataques contra jornalistas, desafio que dependerå da vontade política do novo presidente do México.

O documento completo pode ser visto aqui

Antes das eleiçÔes, a organização RepĂłrteres Sem Fronteiras conseguiu arrancar dos trĂȘs candidatos Ă  frente nas pesquisas um compromisso escrito com a adoção de um plano para conter a violĂȘncia contra a imprensa. 

  • MatĂ©ria atualizada para refletir a vitĂłria de Claudia Sheinbaum