Londres – Em sua primeira fala em pรบblico desde que deixou a prisรฃo no Reino Unido e passou a viver na Austrรกlia, Julian Assange fundador do Wikileaks, afirmou que sua libertaรงรฃo nรฃo significava uma vitรณria da justiรงa, jรก que foi obrigado a se declarar “culpado por fazer jornalismo” como condiรงรฃo para ser solto. 

“Quero ser totalmente claro: nรฃo estou livre hoje porque o sistema funcionou, e sim por ter me declarado culpado por fazer jornalismo, culpado por ter buscado informaรงรตes junto a uma fonte, culpado por ter conseguido essas informaรงรตes e culpado por informar o pรบblico sobre esses fatos”.

Ao lado da mulher, Stella, e do diretor do Wikileaks, Kristin Hrafnsoon, Assange respondeu por mais de uma hora a perguntas de membros da organizaรงรฃo de direitos humanos Council of Europe na manhรฃ desta terรงa-feira (1) em Estrasburgo, como parte de um processo que analisa o impacto do seu caso para os direitos humanos e para a liberdade de imprensa.

Assange comeรงou o depoimento se desculpando por ainda estar em recuperaรงรฃo pelo tempo em que ficou na prisรฃo, sugerindo nรฃo estar em sua melhor forma, mas respondeu a quase todas as perguntas.

Na รบltima, sobre conselhos a jornalistas que cobrem temas arriscados ou guerras, fez uma longa pausa, disse estar cansado e pediu ao diretor do Wikileaks que respondesse. 

No inรญcio o fundador do Wikileaks demonstrou bom humor, explicando que estava reaprendendo a viver como pai, como marido e atรฉ a lidar com uma sogra, despertando risos da plateia formada por membros do Conselho e por jornalistas. 

Mas o tom da conversa foi diferente a partir daรญ.

Ele nรฃo economizou crรญticas ร  justiรงa britรขnica que o manteve preso por cinco anos; aos EUA por terem “interpretado” as leis para usรก-las como forma de perseguiรงรฃo devido ร s revelaรงรตes de segredos de guerra, e atรฉ a jornalistas e รณrgรฃos de imprensa “alinhados ao sistema”. 

Processado pelos EUA sob a lei de Espionagem pela publicaรงรฃo de documentos e vรญdeos mostrando as aรงรตes das Forรงas Armadas nas  guerras do Iraque e do Afeganistรฃo, Julian Assange afirmou em Estrasburgo que foi ingรชnuo em acreditar na justiรงa dos EUA. 

“Era esperado que haveria assรฉdio e processos judiciais, mas estรกvamos preparados para lutar defendendo o valor das publicaรงรตes. E sabรญamos que era legalmente possรญvel ganhar. 

Mas fui ingรชnuo em acreditar nas leis. No fim, elas sรฃo papรฉis que podem ser reinterpretados diante de interferรชncia polรญtica.”

Assange se disse convicto de que as leis sรฃo feitas para proteger interesses, e que Estados sempre tentarรฃo expandir a interpretaรงรฃo delas para atingir seus objetivos, como fizeram os EUA a seu ver. 

“Nรณs irritamos um poder constituรญdo, a รกrea de inteligรชncia dos EUA. Foi poderoso o suficiente para levar a uma reinterpretaรงรฃo da Constituiรงรฃo”. 

O caso Assange colocou em questรฃo a Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressรฃo. 

‘Culpado por fazer jornalismo’: Assange desistiu da batalha jurรญdica 

Julian Assange passou 14 anos em uma batalha jurรญdica que custou caro para a sua vida.

Ele se asilou  em 2012 na Embaixada do Equador em Londres e ficou preso desde 2019 em uma prisรฃo de seguranรงa mรกxima britรขnica, tentando evitar a extradiรงรฃo para os EUA. 

Em junho a defesa conseguiu fazer um um acordo com os EUA. Assange admitiu a culpa em parte das 18 acusaรงรตes que poderiam resultar em penas somadas de 175 anos de cadeia e recebeu uma pena equivalente ao tempo que havia ficado preso.

Com esse acordo, ele foi entรฃo autorizado a ir morar na Austrรกlia, seu paรญs natal, que fez uma campanha incansรกvel por esse desfecho.

Na abertura da sessรฃo em Estrasburgo, ele salientou que o acordo impรดs vรกrias restriรงรตes, incluindo a possibilidiade de processos em tribunais de direitos humanos. 

Assange falou tambรฉm sobre a justiรงa britรขnica, lembrando que embora alguns juรญzes tenham decidido a seu favor nas vรกrias etapas o processo de extradiรงรฃo, “todos demonstraram extrema deferรชncia aos EUA”. 

O fundador do Wikileaks disse entender que os juรญzes fazem parte do ‘establishment’ britรขnico, por serem originรกrios da elite que tem interesse em manter boas relaรงรตes com os EUA por razรตes inclusive comerciais, citando as grandes empresas e bancos. 

E que por isso em vรกrios momentos do processo os tribunais “abriram caminho para os EUA conseguirem a extradiรงรฃo”. 

Jornalistas e Assange 

Julian Assange comentou ainda sobre o apoio recebido de organizaรงรตes de liberdade de imprensa, de direitos humanos e da imprensa. 

Seu caso foi acompanhado passo a passo em todo o mundo sob a perspectiva da ameaรงa para o jornalismo caso ele fosse condenado. 

Ele disse que “poderia ter escolhido melhor” alguns parceiros de mรญdia que publicaram as informaรงรตes vazadas pelo Wikileaks, sem citar nomes, sugerindo que podem nรฃo ter ficado ao seu lado quando a situaรงรฃo se complicou. 

E afirmou que no curso dos acontecimentos, foi mais difรญcil conseguir apoio de organizaรงรตes de mรญdia nos EUA, no Reino Unido e em paรญses aliados, pois “vรกrias entraram no alinhamento polรญtico”. 

Assange: ‘Jornalismo, ativismo pela verdade’  

Assange abordou voluntariamente em sua fala em Estrasburgo uma questรฃo que sempre รฉ colocada sobre o seu trabalho: quem รฉ de fato um jornalista. 

Atรฉ organizaรงรตes de liberdade de imprensa jรก questionaram a condiรงรฃo de jornalista de Assange, pois o Wikileaks nรฃo รฉ um site de notรญcias regular, funcionando mais como uma plataforma de publicaรงรฃo de revelaรงรตes que depois sรฃo compartilhadas por outros รณrgรฃos de imprensa. 

Na audiรชncia em Estrasburgo, ele disse: 

“Eu entendo esse debate. Tento ser extremamente preciso no meu trabalho, e acho que precisรฃo รฉ vital, fontes primรกrias sรฃo vitais.

Mas existe uma รกrea em que sou ativista e jornalista, e todos os jornalistas deveriam ser: jornalismo deve ser ativismo pela verdade, pela busca da verdade. 

E isso significa apoiar uns aos outros, e nรฃo se desculpar por isso”. 

O relatรณrio do Comitรช de Assuntos Jurรญdicos e Direitos Humanos do Conselho da Europa considera as acusaรงรตes dos EUA contra Assange โ€œdesproporcionalmente severasโ€, destacando que sua acusaรงรฃo sob a Lei de Espionagem, ligada a atividades jornalรญsticas, o qualifica como โ€œprisioneiro polรญticoโ€ segundo os critรฉrios da Assembleia.

O relatรณrio alerta sobre o impacto negativo que o caso pode ter sobre jornalistas e pede uma revisรฃo independente no Reino Unido, alรฉm de uma investigaรงรฃo dos crimes revelados pelo Wikileaks.

Na quarta-feira, 2 de outubro, os 46 paรญses membros do Conselho da Europa debaterรฃo e votarรฃo o projeto de resoluรงรฃo sobre o tema.

O caso Assange: marco no debate de liberdade de expressรฃo

Assange foi processado pelos EUA por ter divulgado documentos confidenciais das guerras do Afeganistรฃo e do Iraque, tendo se tornado uma figura central no debate sobre a liberdade de informaรงรฃo e o direito de jornalistas e denunciantes divulgarem informaรงรตes de interesse pรบblico. 

Os EUA abriram 18 processos contra ele, com penas que somadas poderiam chegar a 175 anos.

Em 2012 o fundador do Wikileaks se asilou na embaixada do Equador em Londres, e em 2019 foi preso no paรญs, iniciando uma batalha para evitar a extradiรงรฃo para os EUA. 

Em junho deste ano Julian Assange fechou um acordo em que admitiu os crimes de conspiraรงรฃo e divulgaรงรฃo de documentos de seguranรงa nacional e recebeu uma pena de 62 meses, exatamente o tempo em que jรก estava detido.

Assim, foi  autorizado a ir para a Austrรกlia com a mulher, Stella, e os dois filhos que nasceram quando ele estava vivendo na Embaixada.