Londres – Mark Surman, presidente da comunidade de software livre Mozilla, abriu sua participação em um painel da Trust Conference 2024 sobre governança global da inteligência artificial (IA) com duas perguntas para a plateia: “Quem acha que a internet é uma bagunça? E quem acha que ela deveria acabar?”
Muitas mãos se ergueram após a primeira pergunta, e apenas uma depois da segunda, dando a Surman a deixa para fazer a analogia com a IA generativa: a falta atual de regras não pode levar à conclusão de que a sociedade deve abrir mão da tecnologia.
Mas é preciso nivelar as regras do jogo, como apontou Mariagrazia Squicciarini, da Unesco, fazendo outra analogia: “Seria possível disputar um jogo de futebol entre duas seleções internacionais se as regras fossem diferentes em cada país?
Parece simples, mas não é. Quem faz as regras? Como fazer cumprir? Quem pune os infratores? Essa bola está rolando de um lado para o outro desde pelo menos 2019, três anos antes do lançamento do ChatGPT.
Mas a popularização da IA generativa, desencadeada pela ferramenta da Open AI, motivou outras empresas a se lançarem na corrida, tornando a governança global mais urgente e também mais complexa.
O painel da Trust Conference sobre o tema reuniu três especialistas – Surman, Squicciarini e Jennifer Bachus, do Departamento de Estado dos EUA.
Apesar de não apresentarem uma abordagem única, todos concordaram que já passou da hora de deixar as discussões teóricas e partir para a ação.
ONU à frente da governança global da IA?
Mariagrazia Squicciarini, que representa a posição da Unesco sobre o tema nas reuniões do G7 e do G20, enfatizou a necessidade de uma estrutura global, com uma abordagem multilateral e multissetorial.
Ela argumenta que a IA tem implicações para várias partes interessadas e suas regras não podem ser ditadas por um único país.
“A AI afeta as políticas externas, pois tudo está interligado, e daí a necessidade de uma abordagem integrada. Não estamos falando somente com governos, mas com todos os atores.
A Unesco foi incumbida desde 2019 pelos países membros da ONU a desenvolver os parâmetros, os valores, e as abordagens globais. Já temos tudo isso. Vamos implementar.”
Sem a ONU na governança global?
Jennifer Bachus, diplomata americana, dirige o Bureau of Cyberspace and Digital Policy, órgão do Departamento de Estado dos EUA que coordena a política do país referente ao ciberespaço e às tecnologias digitais.
Ela demonstrou desconforto com o que chamou de “abordagem negativa da IA” nas conversas com a liderança de organismos internacionais.
“Sinto que às vezes nos encontros globais gastamos todo o nosso tempo falando sobre IA para o mal, sobre as preocupações de vigilância, que são incrivelmente importantes.
Mas as pessoas querem falar sobre como podemos ter uma tecnologia que funcione para as sociedades, para as pessoas e não apenas para os governos.”
A diplomata garantiu que a estratégia de seu país não é trabalhar para que empresas americanas dominem o mercado, como acontece atualmente com as Big Techs de mídia social, e que o foco principal é a IA estar a serviço da sociedade.
Mas sugeriu um modelo de governança inverso ao proposto pela representante da Unesco:
“Eu diria que deveríamos parar de esperar para ver se a ONU faz alguma coisa e, em vez disso, trabalhar de baixo para cima.”
IA de Interesse Público e distribuição de riqueza
Mark Surman, presidente da organização sem fins lucrativos que criou o Firefox e busca desenvolver tecnologia para uma IA mais confiável (Mozilla.ai), defendeu uma organização multissetorial para gerir uma IA de Interesse Público, com infraestrutura pública aberta para que o setor possa impulsionar globalmente resultados benéficos à coletividade, inclusive econômicos.
“É uma parte crítica e pouco discutida: para onde queremos levar a economia da IA? Como distribuímos a riqueza? Como construímos indústrias de IA nativas que mantenham o dinheiro no próprio país?
Como construímos uma economia de IA global justa? Ao falarmos sobre regulamentação, ética, uso de IA para serviços públicos, não podemos abrir mão do nosso futuro econômico em prol de um conjunto pequeno de atores.
Precisamos configurar uma economia de IA da qual todos possam participar e se beneficiar.”
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