O Departamento de Justiça dos EUA solicitou a um tribunal federal no dia 18 de julho a liberação das transcrições do Grande Júri do caso de Jeffrey Epstein. A ordem do presidente Donald Trump veio após semanas de frustração entre alguns grupos de extrema-direita devido à recusa de sua administração em liberar os “‘arquivos Epstein’ completos e sem censura”.

Epstein, um financista rico com conexões poderosas, foi preso em 2019 sob acusações de tráfico sexual. Posteriormente, morreu por suicídio em uma prisão de Manhattan enquanto aguardava julgamento.

No início de 2025, um tribunal federal abriu parte dos documentos judiciais. Embora os nomes de alguns dos supostos clientes e vítimas do caso tenham sido divulgados, muitos foram censurados ou omitidos.

Caso Epstein e QAnon: foco na suposta elite secreta

A prisão e a morte de Epstein se tornaram um foco central para os seguidores do QAnon. Os defensores do movimento viam os fatos como provas da existência de uma elite global secreta envolvida em tráfico de crianças sob a proteção de instituições poderosas.

A divulgação (ou a omissão) dos registros do caso Epstein é frequentemente citada nos círculos do movimento QAnon como prova de um acobertamento maior pelo chamado “estado profundo”.

Alguns seguidores do movimento MAGA (Make America Great Again) e do Partido Republicano acreditam na falsa alegação de que os Estados Unidos são secretamente controlados por um grupo secreto de elites constituídas por pedófilos, traficantes sexuais e satanistas.

Com o tempo, o que começou como uma teoria conspiratória infundada em plataformas obscuras alcançou o grande público. Isso influenciou a retórica e os debates políticos, chegando até a remodelar o cenário político americano.

Trump e a narrativa do QAnon sobre o caso Epstein

A crença central dos seguidores do QAnon é de que Trump é uma figura heróica combatendo uma rede de pedofilia da elite.

No entanto, as tentativas de Trump de minimizar ou barrar as revelações que, para eles, validariam essa visão de mundo, causaram confusão entre seus apoiadores.

Para alguns, o atraso na liberação dos arquivos parece uma traição ou até mesmo a possibilidade do envolvimento do presidente no esquema.

Outros tentam reinterpretar as ações de Trump por meio de lógicas de conspiração cada vez mais sem fundamento.

Trump tem publicamente descartado as demandas pela liberação completa dos arquivos Epstein como uma “farsa”. Ele também fez alegações falsas.

Em 15 de julho de 2025, Trump disse: “Sabe, eu diria que esses arquivos foram criados por Comey [diretor do FBI durante o governo de Barak Obama]. Foram criados por Obama”.

Do Pizzagate ao movimento conspiratório mais amplo

Como pesquisador do extremismo, sei que o movimento vê Trump como uma figura mitológica e interpreta as ações dele de modo que se encaixem nessa narrativa dominante. Essa maleabilidade torna o movimento perigoso e com potencial durabilidade.

O movimento QAnon começou com a teoria da conspiração Pizzagate em 2016, fazendo a alegação falsa de que democratas do alto escalão operavam uma rede de tráfico sexual infantil em uma pizzaria de Washington, D.C.

A narrativa sem provas ganhou tanta repercussão online que um homem armado com um fuzil de assalto invadiu a pizzaria, com o objetivo de “libertar as crianças”.

Em 2017, uma figura anônima chamada “Q” começou a postar mensagens enigmáticas em fóruns como 4chan e 8kun.

“Salve as crianças”: caso Epstein fortaleceu QAnon

As acusações sobre a existência de uma suposta rede global de elites envolvidas no controle de instituições globais, incluindo governos, empresas e a mídia, assim como na prática de tráfico de crianças e abusos em rituais, foram centrais para a narrativa do movimento QAnon.

O movimento vem recrutando seguidores com frases como “Salve as Crianças“, para mobilizar em torno de questões de tráfico infantil.Muitos seguidores do QAnon, especialmente mulheres, foram atraídos ao movimento por apelos à proteção de crianças.

Segundo as psicólogas Sophia Moskalenko e Mia Bloom, esse tipo de apelo acessa instintos emocionais muito fortes, tornando narrativas como o QAnon mais persuasivas e difíceis de desmentir, mesmo quando há provas que as contradizem.

A ascensão da crença e a profecia da “tempestade”

Seguidores do QAnon viam Trump como uma figura messiânica trabalhando para expor esse conluio em um acerto de contas decisivo conhecido como “A Tempestade” – um momento em que prisões em massa finalmente trariam justiça.

Eles alegavam que esse momento acabaria por produzir um “Grande despertar”, uma referência aos movimentos revivalistas religiosos dos séculos 18 e 19.

Nesse contexto, a expressão descrevia a suposta iluminação política e espiritual que se seguiriam a “A Tempestade”. Seria um momento de percepção em massa, quando as pessoas “acordariam” para a verdade sobre o “estado profundo”.

De ameaça a infiltração no cenário político 

Em 2019, o FBI identificou o QAnon como uma ameaça de terrorismo doméstico, e as principais plataformas de mídia social começaram a banir conteúdo relacionado. A essa altura, porém, o QAnon já havia se infiltrado na política conservadora tradicional.

Candidatos defensores do Q, como Marjorie Taylor Greene, concorreram a e conquistaram cargos eletivos um ano depois.

Durante o primeiro governo de Trump – de 2017 a 2021 – o movimento QAnon prosperou. As publicações de Q alegavam revelar conhecimento interno de uma guerra secreta travada pelo presidente, frequentemente em coordenação com os militares, contra a elite poderosa.

Influência de Trump nas narrativas conspiratórias

Trump nunca endossou o movimento explicitamente, mas pouco fez para se distanciar dele. Sua administração também incluiu figuras como o ex-conselheiro de segurança nacional Michael Flynn, que interagia abertamente com conteúdo de Q online.

A retórica de Trump, especialmente durante a pandemia de COVID-19 e a eleição de 2020, deu nova vida às narrativas do QAnon.

Quando ele questionou a integridade do processo eleitoral, os seguidores do QAnon interpretaram isso como a confirmação da intromissão do estado profundo.

No entanto, após a derrota de Trump para Joe Biden na corrida presidencial de 2020, os seguidores do QAnon revisaram a profecia original para manter a crença em “A Tempestade” e “O grande despertar”.

Símbolos do QAnon foram usados em comícios

Alguns alegaram que a derrota fazia parte de um plano secreto maior, com a presidência de Biden servindo como um disfarce para expor o estado profundo. Outros acreditavam que Trump permanecia o verdadeiro presidente nos bastidores, enquanto outros reformularam o despertar como um evento espiritual em vez de político.

Na verdade, em 2020, vários candidatos ao Congresso aderiram abertamente ou demonstraram simpatia ao movimento QAnon. Em vários comícios de campanha em 2022 e depois, Trump usou símbolos do movimento.

Na Truth Social, sua plataforma de rede social, Trump retuitou contas afiliadas ao Q e elogiou os apoiadores do QAnon como “pessoas que amam nosso país“.

No mesmo ano, ele repostou uma imagem de si mesmo usando um broche de lapela Q sobreposto com as palavras “A Tempestade está chegando“.

Depois das eleições de 2020

A saída de Trump da Casa Branca em janeiro de 2021 criou uma crise existencial para o movimento QAnon. As previsões de que ele declararia lei marcial ou prenderia Joe Biden e outros democratas no dia da posse não se concretizaram.

As publicações de Q também pararam, deixando muitos seguidores à deriva.

Alguns abandonaram a teoria. Outros racionalizaram as previsões falhas ou adotaram novas narrativas conspiratórias, como a crença de que Trump ainda estava secretamente no comando ou que os militares logo agiriam para reintegrá-lo.

Algumas comunidades QAnon se fundiram ou foram absorvidas por movimentos antivacinas, antiglobalistas e nacionalistas cristãosmais amplos.

Qual é o tamanho do movimento?

Estimar o número de seguidores do QAnon é difícil porque muitos indivíduos não se identificam abertamente com o movimento.

Além disso, aqueles que se identificam, costumam têm uma série de crenças vagamente conectadas ou parciais, em vez de aderir a uma ideologia coerente ou uniforme.

Nem todo mundo que compartilha um meme do Q ou reproduz um ponto de discussão do Q se identifica como parte do movimento.

Ainda assim, pesquisas de grupos como o Public Religion Research Institute de 2024 e a Associated Press descobriram que de a 15% a 20% dos americanos acreditam em algumas das afirmações centrais do QAnon, como a existência de um grupo secreto de elites adoradoras de Satanás controlando o governo.

Entre os eleitores republicanos, o número é frequentemente maior. Isso não significa que todas essas pessoas sejam adeptos fervorosos do QAnon, mas mostra o quanto narrativa do grupo, ou partes dela, se infiltrou no pensamento mainstream.

QAnon vê caso Epstein como prova do “conluio”

A recusa da administração Trump em divulgar as informações nos arquivos Epstein alimentou confusão, desilusão e até radicalização interna no movimento.

Para alguns seguidores do QAnon, essa falha foi um ponto de virada: se Trump – antes visto como o herói na narrativa conspiratória – não revelou ou não conseguiu revelar a verdade, então o “estado profundo” deve estar mais arraigado do que se imaginava.

Ao mesmo tempo, aumentaram as frustrações dentro dos espaços do MAGA e do movimento QAnon.

Alguns veem isso como uma recusa em cumprir uma de suas promessas mais importantes: expor pedófilos da elite. Outros acreditam que o atraso seja estratégico, mais um exemplo do “plano” exigindo mais paciência.

Chave para entender futuro da democracia americana

O movimento QAnon continua evoluindo, mesmo enquanto sua figura central hesita, mostrando o quanto mitos podem ser potentes em tempos de incerteza.

Entender por que essa crença continua a ganhar força é essencial para entender o estado atual da democracia americana.


Este artigo foi originalmente publicado no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons.