Londres – Uma lei para proteger a segurança de crianças online – que deveria ser consenso entre pessoas de qualquer ideologia– transformou-se no Reino Unido em uma luta política que dominou o noticiário dos últimos dias, podendo ter reflexos nas próximas eleições gerais em um país cada vez mais dividido e que vê seu bipartidarismo histórico se dissolver.

A nova Lei de Segurança Online (Online Safety Act), que entrou em vigor no dia 25 de julho com a ambição de tornar o país o mais seguro do mundo para crianças na internet, colocou em lados opostos o político populista Nigel Farage, líder do Reform UK e em plena ascensão, e o Partido Trabalhista, em queda vertiginosa de popularidade um ano após uma vitória massiva do premiê Keir Starmer nas urnas.

Em um lance que pode custar politicamente caro, o Secretário Nacional de Tecnologia, Peter Kyle, trouxe para o debate a figura do predador sexual Jimmy Savile, um trauma na memória do país. Ele disse que quem está contra a lei se posiciona a favor de predadores como Savile.

Farage aproveitou a oportunidade para se posicionar como ofendido e encarnar o papel de defensor da liberdade de expressão. 

Críticas à nova legislação e reação da extrema-direita

A Lei de Segurança Online, que levou quase cinco anos para ser implementada desde que o primeiro projeto de lei foi anunciado, não agrada a todos. Ela é criticada por ser fraca demais nas punições às “Big Techs” ou por impor às plataformas medidas vistas como restritivas à liberdade de expressão.

Esta última é uma crítica comum de setores ligados à extrema-direita, que preferem o “vale-tudo” nas redes e total liberdade para as gigantes digitais – uma postura defendida por Nigel Farage e por figuras associadas a ele, como Donald Trump e Elon Musk

Assim que a lei entrou em vigor, Farage e o partido Reform UK prometeram revogá-la se vencerem as próximas eleições, descrevendo-a como uma ameaça “distópica” à liberdade de expressão.

Eles argumentam que o novo regulamento oferece o risco de “apagar a liberdade de expressão com uma canetada”. E advertem que ela pode empurrar as crianças para “cantos escuros e perigosos da internet”.

O tema é sensível no país, sobretudo depois do suicídio da jovem Molly Russell, em 2017 – caso que impulsionou a proposição da lei. E que retomou força com a  série Adolescence, que retrata o universo incel na Inglaterra (comunidades online formadas por homens que se identificam como involuntariamente celibatários, com discurso frequentemente misógino e uma visão fatalista sobre relacionamentos e gênero).

Declarações inflamam o debate político

O debate em torno da lei na mídia britânica, destacando prós e contras, seguia no ritmo esperado até a situação escalar na manhã de terça-feira (29). Numa entrevista matinal na Sky News, o Secretário de Tecnologia, Peter Kyle, afirmou: 

“Se pessoas como Jimmy Savile estivessem vivas hoje, estariam cometendo seus crimes online. E Nigel Farage está dizendo que está do lado deles.”

Jimmy Savile foi um apresentador de programas infantis da BBC que, durante décadas, usou sua posição para abusar de crianças. Ele morreu sem ser punido e se transformou em um trauma nacional, pela extensão de seus crimes e pela rede de acobertamento que o protegeu.

Farage reagiu imediatamente, chamando a acusação de “nojenta” e exigindo um pedido de desculpas. 

 

Kyle, no entanto, reiterou sua posição em uma entrevista posterior à ITV News, dizendo que quem é contra a Online Safety Act está “do lado de predadores e pedófilos”.

Reação da direita populista contra a lei de segurança online para crianças 

Para um político populista, aliado de Donald Trump e que se mostra extremamente hábil em usar redes sociais — e tem conquistado aprovação do público jovem, apesar de ter 61 anos e um estilo pessoal que está longe de parecer moderninho — foi um “prato cheio”.

Líderes do Reform UK, como Zia Yusuf, ecoaram esse sentimento. Zia rotulou os comentários de Kyle como “ultrajantes” e sugeriu que eles demonstram como o governo é “profundamente irresponsável” em relação à segurança infantil, além de “denegrir as vítimas” de Savile.

Com isso, Farage conseguiu se posicionar como a parte ofendida, utilizando a gravidade das acusações como um elemento para sua narrativa política.

O que determina a nova lei

A Lei de Segurança Online determina que as empresas de tecnologia protejam as crianças online sob o conceito de “Duty of Care” – a responsabilidade do Estado de proteger indivíduos vulneráveis.

Sob essas novas regras, as plataformas são obrigadas a salvaguardar menores de 18 anos contra conteúdos como pornografia, material que incentive suicídio, automutilação e transtornos alimentares, conteúdo violento, discurso de ódio, bullying e acrobacias perigosas, como as dos desafios do TikTok.

As empresas devem implementar verificações robustas de idade ou garantir que esse conteúdo não circule em suas plataformas.

Defesa firme do governo à nova regra

Falando em nome do governo do primeiro-ministro Keir Starmer,  Peter Kyle tem defendido vigorosamente a nova legislação, acusando os críticos de “fazer jogo político com a segurança infantil”.

Segundo ele, a lógica da lei é simples: se uma criança não pode comprar uma revista adulta, também não deve poder acessar online um conteúdo similar.

Ele garante que a legislação não visa censurar ou policiar o acesso de adultos a conteúdo legal, mas apenas proteger crianças.

Pontos controversos e negociações

Embora represente um avanço, a lei atrai críticas tanto por seus excessos quanto por suas omissões. A primeira versão foi publicada em dezembro de 2020 e passou por um longo período de discussão, negociação e emendas.

O resultado final ficou aquém do que organizações de proteção a crianças esperavam. Um dos pontos mais polêmicos deixados de fora foi a quebra da criptografia de ponta a ponta, usada em plataformas como WhatsApp e Messenger.

Sua quebra permitiria identificar agressores anônimos e também outros criminosos, como terroristas. No entanto, prevaleceu o argumento da liberdade de expressão e do direito ao anonimato.

Ofcom sob pressão

A aplicação da lei também é alvo de críticas. O órgão regulador, Ofcom, tem sido pressionado a endurecer o jogo e multar grandes empresas de tecnologia que desrespeitarem as novas regras.

O Ofcom pode aplicar multas de até 10% do faturamento global das empresas, bloquear serviços no Reino Unido e até acionar judicialmente os executivos responsáveis.

Chris Sherwood, CEO da NSPCC (National Society for the Prevention of Cruelty to Children), declarou ao jornal The Times que o órgão ainda não agiu contra grandes plataformas que deixam conteúdo ilegal no ar.

Ele defende que o foco do órgão regulador deve estar nas “empresas gigantes” que mais impactam a vida das crianças.

Apesar da intenção inicial de unir a sociedade em torno da proteção infantil, a onda contra a nova lei já saiu da esfera política.  Uma petição contra a Online Safety Act ultrapassou 415 mil assinaturas, obrigando o Parlamento a debater novamente o tema.

Farage ganha terreno nas pesquisas

O acirrado debate ocorre em um momento de forte transformação política no Reino Unido. Segundo o instituto YouGov, o Reform UK tem neste momento 28% das intenções de voto, superando o Partido Trabalhista (22%) e os Conservadores (17%).

Farage lidera também em popularidade pessoal entre todos os políticos do país, com 37% de aprovação — à frente do primeiro-ministro, que tem 27% e ocupa o 7º lugar na lista. 

Ele tem ampliado seu alcance entre eleitores de diferentes espectros políticos, incluindo ex-apoiadores de trabalhistas e liberal-democratas.

A força de Farage nas redes sociais

Nigel Farage também virou uma sensação no TikTok, rede dominada por jovens, muitos dos quais votarão pela primeira vez nas próximas eleições — as primeiras com voto permitido a eleitores com idade a partir 16 anos no Reino Unido.

Ele tem mais de 1,3 milhões de seguidores e alguns vídeos ultrapassam a marca de 2 milhões de visualizações. 

O crescimento do político contrasta com o colapso do atual governo nas pesquisas, após uma vitória histórica que encerrou os 12 anos turbulentos dos Conservadores, marcados por escândalos envolvendo o ex-primeiro-ministro Boris Johnson.

Só que os Trabalhistas não souberam manter o capital político. E a esquerda está ainda mais dividida após o lançamento de um novo partido, o Your Party, por Jeremy Corbyn, ex-líder histórico dos Trabalhistas, que foi buscar outros ares depois da guinada da agremiação para a centro-esquerda capitaneada por Starmer. 

Quem é Nigel Farage?

Há poucos anos, cogitar Nigel Farage como futuro primeiro-ministro soaria absurdo. Ele é um político conhecido por seu papel central na campanha pelo Brexit — a saída do Reino Unido da União Europeia.

Nascido em 1964, começou sua carreira como corretor da bolsa de valores antes de mergulhar na política como um dos fundadores do UKIP (Partido da Independência do Reino Unido), que liderou por vários anos.

Farage foi eleito para o Parlamento Europeu em 1999 e permaneceu lá até 2020, tornando-se uma figura proeminente do euroceticismo britânico. Em 2019, fundou o Brexit Party, que mais tarde foi rebatizado como Reform UK.

Apesar de sua influência política e presença constante na mídia, e de ter trabalhado como estrategista na primeira campanha de Donald Trump, Farage nunca havia conseguido se eleger para o Parlamento britânico até 2024, quando finalmente venceu uma eleição, aproveitando o esvaziamento do Partido Conservador. 

Sua trajetória é marcada por uma retórica populista e nacionalista, forte oposição à União Europeia e críticas às elites políticas tradicionais.

Ele continua sendo uma figura polarizadora, admirado por muitos como defensor da soberania britânica e criticado por outros tantos por seu estilo confrontador e posições controversas.

Em um país dividido, com atos violentos contra imigrantes se espalhando por várias localidades e problemas econômicos se acumulando, a aposta em Farage já não é absurda, como mostram as pesquisas. E a defesa da liberdade de expressão é a bandeira que pode ajudá-lo a chegar ao comando do país. 

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