Uma inquisição política moderna está se desenrolando nas “praças digitais” nos Estados Unidos.
O ativista de extrema direita Charlie Kirk, assassinado há duas semanas, tornou-se o ponto focal de uma campanha coordenada de silenciamento de críticos que relembra, de forma assustadora, um dos capítulos mais sombrios da história americana.
Indivíduos que criticaram publicamente Kirk ou fizeram comentários considerados insensíveis sobre sua morte estão sendo ameaçados, demitidos ou expostos.
Professores e acadêmicos foram dispensados ou punidos, um por postar que Kirk era racista, misógino e um neonazista, outro por chamá-lo de “nazista propagador de ódio”.
Jornalistas também perderam seus empregos após comentários sobre o assassinato de Kirk, assim como o apresentador de TV Jimmy Kimmel.
Um site chamado “Expose Charlie’s Murderers” começou a publicar nomes, localizações e empregadores de pessoas que criticavam Kirk, até ser retirado do ar.
O vice-presidente dos EUA, JD Vance, incentivou a reação pública, pedindo a apoiadores para “denunciar … inclusive ao empregador”.
Essa é a “cultura do cancelamento” da extrema direita, como não se via nos EUA desde a era McCarthy nos anos 1950.
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A era sombria do macarthismo nos EUA
A era McCarthy pode ter se apagado da memória coletiva, mas é importante entender como se desenrolou e o impacto que teve sobre os EUA.
Como disse o filósofo George Santayana, “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.
Desde os anos 1950, “macarthismo” tornou-se sinônimo de acusações infundadas de deslealdade contra opositores políticos, frequentemente com uso de medo e humilhação pública.
O termo vem do senador Joseph McCarthy, republicano e principal arquiteto de uma impiedosa caça às bruxas para eliminar supostos comunistas e subversivos nas instituições americanas.
A campanha incluiu perseguições públicas e privadas do fim dos anos 1940 ao início dos anos 1950, com audiências no Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara e no Subcomitê Permanente de Investigações do Senado.
Milhões de funcionários federais tiveram de preencher formulários de lealdade, enquanto centenas foram demitidos ou não contratados.
Centenas de celebridades de Hollywood foram também colocadas em listas negras.
‘Comunistas’ denunciados
A campanha mirou ainda a comunidade LGBTQI+ que trabalhava no governo – conhecida como Lavender Scare.
Assim como o “doxing” hoje, testemunhas eram forçadas a fornecer nomes de simpatizantes comunistas, e investigadores entregavam listas de testemunhas à imprensa.
Empresas demitiam funcionários que invocavam a Quinta Emenda e se recusavam a testemunhar.
O maior impacto foi sobre o discurso público: instaurou-se um medo generalizado de expressar opiniões que pudessem soar dissidentes.
Quando os registros do Congresso foram abertos no início dos anos 2000, o Subcomitê Permanente de Investigações declarou que as audiências “fazem parte do nosso passado nacional, que não podemos esquecer nem permitir que se repita”.
Outra caça às bruxas sob Trump: macarthismo piorado
Hoje, uma campanha semelhante é conduzida pelo governo Trump e aliados, que alimentam o medo do “inimigo interno”.
Essa nova ofensiva de listas negras contra críticos do governo segue o mesmo padrão do macarthismo, mas se espalha muito mais rápido pelas redes sociais e atinge muito mais cidadãos comuns.
Mesmo antes do assassinato de Kirk, já havia sinais de um renascimento macarthista nos primeiros dias do segundo mandato de Trump.
Após ordenar o desmonte de programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), instituições públicas, universidades, empresas e escritórios de advocacia foram pressionados a seguir o mesmo caminho.
Alguns foram ameaçados de investigação ou corte de verbas federais. No Texas, uma professora foi acusada de guiar agentes de imigração até supostos não cidadãos em uma escola.
Um grupo chamado Canary Mission identificou imigrantes pró-Palestina com green card para deportação. E nesta semana, a Universidade da Califórnia em Berkeley admitiu ter entregue nomes de funcionários acusados de antissemitismo.
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Contra o ‘woke’, o politicamente correto
Apoiadores da campanha contra críticos de Kirk defendem suas ações como proteção contra ideologias “antiamericanas” e “woke”.
Essa narrativa simplifica o debate em uma visão maniqueísta: os “bons cidadãos” contra a “elite esquerdista corrupta”.
O fato de o assassinato da deputada democrata Melissa Hortman não ter provocado reação semelhante da direita revela um duplo padrão.
Outro exemplo é o silenciamento de quem critica a ideologia divisiva de Kirk, enquanto se toleram suas declarações mais odiosas, como quando chamou George Floyd de “canalha”.
No clima atual, empatia não é um “termo inventado da nova era”, como dizia Kirk, mas parece ser altamente seletiva.
Isso aumenta o risco: quando vizinhos viram inimigos e o diálogo é fechado, crescem as possibilidades de violência.
Muitos já discutem paralelos com a ascensão do fascismo na Alemanha, e até a possibilidade de uma nova guerra civil.
Dá para reagir ao Macarthismo da nova era Trump?
Os paralelos entre o macarthismo e o trumpismo são claros e perturbadores. Em ambos os períodos, dissentir foi confundido com deslealdade.
Até onde isso pode chegar? Assim como na era McCarthy, parte da resposta depende da reação pública às táticas de Trump.
A influência de McCarthy começou a desmoronar quando acusou o Exército de ser conivente com comunistas, em 1954.
As audiências, transmitidas pela TV, não foram bem. Em certo momento, o advogado do Exército proferiu uma frase que ficou famosa:
Até este momento, senador, acho que nunca havia medido plenamente sua crueldade ou imprudência […] O senhor não tem senso de decência?
Sem uma reação social coletiva contra esse novo macarthismo e sem retorno às normas democráticas, corremos o risco de mais degradação da vida pública.
O sangue da democracia é o diálogo; sua salvaguarda é o dissenso. Abandonar esses princípios é pavimentar o caminho para o autoritarismo.
Este artigo foi publicado originalmente no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons.