Em resumo
- Relatório da Repórteres Sem Fronteiras documenta rede de influência russa espalhando desinformação pelo mundo
- Um dos alvos é a América Latina, com canais em espanhol dedicados a disseminar narrativas anti-imperialistas
Além da repressão interna à imprensa independente, a Rússia sob Vladimir Putin criou uma sofisticada rede de influência que se estende por vários países para disseminar desinformação e influenciar o público na direção de narrativas como repulsa ao Ocidente.
A Repórteres Sem Fronteiras acaba de divulgar um relatório consolidando os resultados do primeiro ano do projeto “The Propaganda Monitor”, que disseca a geopolítica da máquina de influência russa distribuída por todo o mundo, inclusive pela América Latina.
A repressão da liberdade de expressão e de imprensa na Rússia sob Vladimir Putin começou bem antes da invasão da Ucrânia, em 2022. Não foi à toa que em 2021 o jornalista russo Dmitry Muratov, fundador e editor do Novaya Gazeta, foi reconhecido com o Prêmio Nobel da Paz, junto com a filipina Maria Ressa.
Nem isso serviu como escudo. Depois de uma saga de perseguições, o jornal e o site deixaram de existir, como tantos veículos independentes russos.
Mas o que é assustador no documento da RSF é a sofisticada operação construída pela Rússia para influenciar outros países com sua retórica.
Influência russa: armas diversificadas
Para impor sua narrativa ao público, o Kremlin desenvolveu um ecossistema de propaganda diversificado que combina mídia estatal, meios de comunicação online, influenciadores e organizações paralelas.
O sistema usa um arsenal diversificado de armas – desde meios de comunicação estatais como RT e Sputnik até empresas como o Grupo Wagner – e uma variedade de táticas, como campanhas de desinformação, roubo de identidade e até a criação de escolas de jornalismo falsas.
Pelas narrativas propagadas por essa máquina, os ucranianos são “nazistas”, a guerra na Ucrânia é uma “operação especial” e os meios de comunicação independentes são “agentes estrangeiros” financiados por um “Ocidente decadente”.
Para disseminá-las, o arsenal é diversificado, segundo o documento.
Na África, a Rússia está explorando a fragilidade do ecossistema de mídia local para influenciar a opinião pública por meio de “empreiteiros de informação”. Na Europa, apesar das sanções da UE, as redes RT e Sputnik espalham a retórica de Putin contra o bloco, segundo a RSF.
Na América Latina, o discurso é centrado no anti-imperialismo, e isso bem antes de atos de Donald Trump contra países da região, com as ameaças de retaliação ao Brasil devido a leis de regulamentação das plataformas digitais.
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América Latina: a influência da Rússia em espanhol
Apesar da importância econômica e política do Brasil, o foco da influência russa é o mercado que fala espanhol.
A atuação russa na região é motivada pela reciprocidade, diz o documento, afirmando que Moscou tem a visão de que a região é tão essencial para os Estados Unidos quanto a Ucrânia é para a Rússia.
Nesse contexto, países como Venezuela e Cuba são vistos como os equivalentes regionais da Ucrânia e Bielorrúsia.
A estratégia do Kremlin explora fortemente narrativas fortemente anti-americanas e anti-imperialistas. O discurso visa descreditar os Estados Unidos, retratando-os como a principal causa das dificuldades sociais e econômicas locais e dos problemas em todo o Hemisfério Ocidental.
De acordo com o relatório, essa abordagem encontra ampla aceitação, visto que o público latino-americano é frequentemente anti-imperialista, bolivariano e anti-americano.
Em vez de se basear apenas em notícias falsas (fake news), a propaganda russa utiliza uma técnica chamada “política dos símbolos”, onde os fatos são justapostos de forma a distorcer a verdade e apresentar uma visão unilateral, explica o documento.
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Canais e alcance da mídia russa na América Latina
A principal ferramenta de influência da Rússia na Aé a RT em espanhol (RT Actualidad), cuja presença na região se expande desde o início dos anos 2000, é apontada como a principal ferramenta da influência russa na América Latina.
Ela possui quatro escritórios físicos estabelecidos em diferentes países e mantém uma presença digital ativa em outros oito, segundo a RSF.
O alcance desse conteúdo é vasto, afirma a organização.
Os números de acesso não estão atualizados no relatório, mas os registros apresentados, de 2023 mostram que naquele ano a Sputnik e a RT em espanhol atingiram uma audiência regular combinada de aproximadamente 32 milhões de consumidores em toda a América Latina.
A RT em espanhol se destaca particularmente nas mídias sociais, contando com cerca de 17 milhões de seguidores no Facebook em 2023, um número superior ao das contas em espanhol de grandes veículos internacionais, como a CNN e a BBC, e até mesmo a conta em inglês da própria RT.
Durante os primeiros meses da guerra na Ucrânia, a RT em espanhol foi o terceiro domínio mais compartilhado no Twitter para posts em espanhol sobre a guerra, com a Sputnik também entre os 15 primeiros, revela o estudo.
Nicarágua: Um Centro de Propaganda
Desde 2022, a Nicarágua tornou-se um centro crucial para a expansão da propaganda russa na América Latina, de acordo com a investigação da Repórteres Sem Fronteiras.
A Rússia considera Manágua um ponto estrategicamente importante, especialmente devido a questões regionais como migração, tráfico de drogas e crime organizado na América Central.
Em 2023, a RT estabeleceu sua sede física na capital nicaraguense.
O governo de Daniel Ortega facilita a inserção de conteúdo e métodos de produção russos nos veículos de mídia estatal, que se tornaram as fontes dominantes de informação após o fechamento, confisco ou exílio da maioria dos meios independentes desde 2018, diz o estudo.
A aliança prevê que a RT e a Sputnik forneçam treinamento, equipamentos profissionais e intercâmbios internacionais para jornalistas estatais nicaraguenses, frequentemente financiados diretamente por agências estatais russas.
O conteúdo produzido neste centro de propaganda tem o foco em confrontar os Estados Unidos, a OTAN e a imprensa ocidental, glorificando a Rússia e impulsionando a narrativa de que a Ucrânia é um “estado fantoche”.
O controle sobre a informação é severo; parceiros locais da RSF reportaram que nenhum jornalista na Nicarágua estava disposto a se manifestar sobre essas colaborações por medo de ser acusado de traição.
O relatório completo pode ser visto aqui.

