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BBC x Trump

Como a disputa entre Trump e a BBC por indenização de US$ 1 bi virou embate político no Reino Unido

Presidente dos EUA quer indenização por difamação após relatório revelar edição controversa de discurso, mas críticos apontam tentativa de comprometer credibilidade da rede

Donald Trump presidente dos EUA com bandeira ao fundo e Keir Starmer, premiê britânico

Após ameaça de processo legal de Trump contra a BBC, o premiê britânico, Keir Starmer, foi cobrado no Parlamento a instar o presidente americano a desistir da causa.



O caso entre o presidente Trump e a BBC, que pode levar a uma indenização de US$ 1 bilhão, entrou na pauta do Parlamento, com o primeiro-ministro Keir Starmer evitando tomar posição contra o chefe da nação aliada.


A pressão sobre Keir Starmer no Parlamento britânico nesta quarta-feira (12) é um sinal claro de que a crise entre Donald Trump, que ameaça a BBC com um processo por difamação, deixou de ser apenas um debate sobre a eterna dificuldade de enquadrar o que é imparcialidade  jornalística — virou um embate político doméstico e transatlântico.

Durante a sabatina semanal no Parlamento, o primeiro-ministro foi cobrado publicamente pelo líder do partido Liberal-Democrata, Ed Davey, a instar o presidente dos EUA a desistir da ação bilionária que ele ameaça mover contra a emissora e assim impedir o uso de dinheiro público para custear eventuais indenizações.

A cobrança foi uma resposta direta à fala do ex-presidente americano no dia anterior, quando afirmou pela primeira vez na TV (em uma entrevista à Fox News), que se sente “obrigado” a processar a BBC por editar seu discurso sobre a invasão do Capitólio em um programa exibido antes das eleições de 2024,  em que foram cortadas parte das falas que pediam manifestações pacíficas.

Trump enviou à BBC uma carta legal assinada por seu advogado, Alejandro Brito,  exigindo desculpas e indenização de US$ 1 bilhão, e protocolou na quarta-feira um pedido oficial em um tribunal da Flórida.

Na tribuna do Parlamento, Starmer evitou um confronto direto com o chefe da nação com quem o Reino Unido tem o que se convencionou chamar de “relacionamento especial”.

Disse confiar na importância da emissora em tempos de desinformação,  embora tenha admitido que a rede precisa “arrumar a casa”. E aproveitou para acusar o antigo governo Conservador de orquestrar uma campanha para desacreditar a BBC.

Processo de Trump contra a BBC: jornalismo ou política partidária?

Os dois episódios reforçam o que já vinha sendo discutido desde a divulgação de um relatório interno vazado na semana passada pelo jornal Daily Telegraph, que apontava falhas de imparcialidade no conteúdo da emissora — destacando justamente a edição das falas de Trump.

Mas o debate ultrapassa o campo da imparcialidade ou de eventuais erros editoriais. Ganha força a ideia de que se trata de uma tentativa de enfraquecer a BBC mirando em seu seu ponto mais vulnerável: o financiamento.

A emissora é mantida com recursos públicos e uma taxa obrigatória paga por domicílios, com contrato a ser renovado em 2027. A ofensiva para minar sua credibilidade começou no governo de Boris Johnson e virou bandeira do campo conservador e de extrema direita deste então.

Há dúvidas sobre a viabilidade jurídica do processo de Trump contra a emissora, já que o programa Panorama em que as falas foram cortadas nem foi exibido nos Estados Unidos. Também chama atenção o fato de Trump só ter se ofendido um ano depois — e de não ter processado outros veículos que noticiaram suas falas incendiárias na época da invasão.

Mas isso agora é secundário. A crise assumiu contornos internacionais, colocando o líder da maior potência global — e inimigo declarado da liberdade de imprensa — no centro de uma disputa com implicações que vão muito além da edição de um discurso, e que para muitos representa um “golpe”.

A crise da BBC e a ameaça de Trump

A crise que hoje abala a BBC começou com a revelação do relatório interno de 19 páginas pelo Daily Telegraph, em linha com seu perfil editorial historicamente ligado ao Partido Conservador e crítico da emissora.

O autor do documento é Michael Prescott, ex-jornalista com longa carreira no jornal Sunday Times, que pertence ao magnata da mídia Rupert Murdoch, e depois executivo de comunicação corporativa.

Prescott atuou como conselheiro independente do Comitê de Diretrizes e Padrões Editoriais da BBC até junho de 2025.

O relatório apontava falhas editoriais graves, entre elas a edição considerada enganosa do discurso de Donald Trump em um episódio do programa Panorama, exibido em outubro de 2024, às vésperas das eleições presidenciais nos Estados Unidos, com o título “Segunda chance?”

O documento não se limita ao caso Trump: menciona também problemas de imparcialidade ou viés em outras áreas da emissora, como a cobertura da guerra em Gaza e a forma como a rede retrata pessoas trans.

No caso das pessoas trans, o documento acusa setores da redação de suprimir perspectivas críticas, criando uma cobertura considerada “de mão única” e pouco equilibrada.

Já em relação à guerra em Gaza, apontou falhas na forma como a emissora lidou com acusações de parcialidade e até de antissemitismo, especialmente no serviço em árabe da BBC.

No início deste ano, a rede foi obrigada a retirar do serviço de streaming um documentário narrado pelo filho de um oficial do grupo Hamas. Esses pontos ampliaram a crise e mostraram que o problema não se restringia ao episódio envolvendo Trump.

O presidente da BBC, Samir Shah, pediu desculpas pelo “erro de julgamento” no caso Panorama e prometeu revisar processos internos para evitar que situações semelhantes se repitam.

As consequências imediatas

As consequências foram imediatas. No domingo (9), o diretor-geral Tim Davie renunciou ao cargo, e dois jornalistas diretamente envolvidos na edição do programa pediram demissão.

A diretora de jornalismo da BBC, Deborah Turness, também renunciou, ampliando a percepção de que a crise atingiu o núcleo da liderança editorial da corporação.

Além disso, a busca de uma nova  liderança do serviço em árabe da BBC tornou-se um novo foco de tensão, em meio às acusações de parcialidade e antissemitismo.

Boris e o ‘desmonte’ da BBC

Davie estava há cinco anos no cargo, tendo navegado nas águas turbulentas que a BBC passou a enfrentar nesse período: uma ofensiva conservadora para minar a credibilidade da rede, sob acusações de parcialidade para justificar mudanças profundas em seu modelo de financiamento.

A temperatura entre Boris Johnson e a emissora pública subiu às vésperas do Brexit, em 2019, quando a dificuldade de um acordo de saída com a União Europeia dominava o noticiário.

Não era apenas a BBC a fazer críticas, mas para Boris e seus aliados a rede virou o principal foco de ataques, embora o fato de ser financiada com dinheiro público não implica em seguir a narrativa do governo – a independência editorial é garantida por lei.

Um personagem importante no enredo da crise atual é  Robbie Gibb, membro do conselho e ex-diretor de comunicações do governo de Theresa May, indicado ao cargo por Johnson.

Ele é acusado por críticos de ter instrumentalizado o relatório para conduzir um “golpe interno” contra a liderança editorial da corporação.

Gibb tem vínculos claros com o campo conservador e sua atuação é vista como parte de uma estratégia política para enfraquecer a independência da BBC e reforçar a narrativa de que a emissora sofreria de viés sistêmico.

O fato de o relatório ter sido entregue ao Telegraph, e não a um jornal de perfil mais neutro, reforça a leitura de que o vazamento foi também um ato político e ligado ao ex-premiê, que antes de se tornar político era jornalista e sabe transitar no mundo da imprensa.

A credibilidade da BBC

Mesmo em meio à crise, a BBC segue sendo um pilar da informação pública britânica.

Segundo pesquisa publicada pelo Reuters Institute for the Study of Journalism após a explosão do caso atual, a emissora continua sendo a fonte de notícias mais utilizada no Reino Unido e mantém níveis de confiança superiores aos de muitos concorrentes.

O relatório, no entanto, aponta que sua credibilidade não é homogênea: a BBC enfrenta desafios de alcance entre os mais jovens e entre públicos com menor escolaridade, além de sofrer com acusações recorrentes de parcialidade em coberturas como Brexit, política doméstica e, mais recentemente, Gaza e questões trans.

Políticos em defesa e em crítica

Muitos analistas e figuras públicas ressaltaram que, embora a emissora tenha falhas a corrigir, ela continua sendo uma instituição nacional essencial, com papel cultural e jornalístico insubstituível – além de sua contribuição para o soft power britânico.

A Secretária Nacional da Cultura, Lisa Nandy, declarou no Parlamento que a BBC enfrenta “desafios, alguns de sua própria responsabilidade”, mas sublinhou que continua sendo “de longe a fonte de notícias mais utilizada e confiável no Reino Unido”.

Para ela, “a BBC como instituição é absolutamente essencial para o país. Num momento em que as linhas entre fatos e opiniões estão perigosamente difusas, precisamos de uma emissora pública forte”.

O primeiro-ministro Keir Starmer reforçou essa posição em sua fala no Parlamento, afirmando  que sua independência editorial é um valor nacional que precisa ser preservado.

Já Boris Johnson aproveitou o episódio para acusar a BBC de “arrogância” e de conduzir uma campanha política contra sua reputação, a mágoa que vem desde o Brexit.

O futuro da BBC

O futuro da BBC está agora em aberto. O contrato da emissora com o governo britânico, que garante seu financiamento será revisado em 2027.

Setores conservadores defendem o fim da taxa de licença que financia a corporação, propondo alternativas como financiamento privado ou modelos de assinatura.

Outros, porém, argumentam que reformas internas são necessárias, mas que o financiamento público deve ser mantido para garantir a independência editorial da BBC.

Trump tem chances de receber indenização?

Donald Trump não ficou apenas na ameaça, e deu os primeiros passos para um processo judicial contra a BBC. O prazo para resposta da rede termina nesta sexta-feira.

Há opiniões divergentes sobre o possível sucesso de uma ação por difamação. Nos EUA, onde ele protocolou o caso, a lei de difamação é mais restritiva para figuras públicas: Trump teria de provar “actual malice”, isto é, que a BBC agiu com intenção deliberada de prejudicá-lo ou com negligência consciente.

Esse é um padrão difícil de alcançar, embora o fato de a própria BBC ter admitido erro possa fortalecer sua argumentação.

Até o prazo final, não se descarta que ocorram negociações diplomáticas entre Reino Unido e Estados Unidos. Ou que a BBC peça desculpas para tentar encerrar o caso.

Mas, independentemente do desfecho, o episódio já representa uma vitória política para Trump, que reforça junto a seus aliados a narrativa de que a grande mídia não merece confiança e que estaria sempre disposta a manipular fatos contra ele.

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