Londres – O caso de uma jornalista condenada por sua cobertura de um feminicídio que chocou a Espanha abriu um debate sobre os limites da liberdade de imprensa e a privacidade de vítimas após a morte, mesmo quando os detalhes do crime fazem parte do processo judicial. 

A jornalista de 41 anos, que não foi identificada, acompanhou para o diário regional Huelva Información (Andaluzia), o caso de Laura Luelmo, morta por um homem recém-saído da prisão onde cumprira pena de 17 anos pelo assassinato de uma idosa. 

A família da vítima e o Ministério Público moveram ação contra a jornalista, condenada por ‘revelação de segredos’ à luz Código Penal, por ter reproduzido informações da súmula do processo. 

Ela recebeu uma pena de dois anos de prisão, multa de 3,2 mil euros (RS$ 17 mil), terá que pagar indenização de 30 mil euros (R$ 160 mil reais) aos pais de Luelmo e foi proibida de trabalhar em jornalismo por dois anos. 

É a primeira sentença dessa natureza na história do jornalismo na Espanha, punindo um profissional por usar informações contidas em um documento judicial, prática comum no país e no mundo. 

Jornalista condenada vai recorrer 

Com 13 anos de profissão cobrindo casos criminais, a jornalista disse que vai recorrer da sentença e sustenta que não cometeu crime, opinião compartilhada por associações locais e internacionais de liberdade de imprensa. 

A Constituição espanhola assegura o direito à liberdade de imprensa. Embora casos criminais sejam objeto de ordem de sigilo durante as investigações, detalhes que fazem parte da súmula dos processos são frequentemente relatados pela mídia. 

Professora de 26 anos, Laura Luelmo foi morta em 2018 em um vilarejo no sul da Espanha. O assassino, Bernardo Montoya, foi condenado à prisão perpétua em 2021 por sequestro, estupro e assassinato. 

O caso teve repercussão nacional e colocou em questão a libertação de pessoas condenadas por assassinato, devido ao risco de reincidência. 

A jornalista condenada foi a primeira a ter acesso à súmula do processo, e suas revelações tiveram grande impacto, sendo depois reproduzidas por outros veículos. 

A família de Luelmo e a promotoria argumentaram que o jornal relatou detalhes dos ferimentos e do exame post-mortem que não eram de interesse público.

Houve também reclamações pela veiculação de imagens de câmeras de segurança mostrando a jovem em um supermercado antes de ser sequestrada. 

Embora outros órgãos de imprensa tenham usado as imagens, apenas a jornalista do Huelva Información e o jornal foram processados. 

Por que o tribunal condenou a jornalista 

O Tribunal Provincial de Huelva entendeu que a jornalista condenada violou o direito de Laura Luelmo à privacidade. De acordo com a lei espanhola, as vítimas têm direito à privacidade mesmo quando falecidas.

A sentença proferida por três juízes diz que as informações “afetaram a esfera pessoal da falecida e sua família, o que causou danos sem qualquer interesse legítimo que não fosse o de oferecer notícias exclusividas furos [jornalísticos] em detrimento da legalidade”.

Os juízes sustentaram que a liberdade de imprensa só se aplicaria se a vítima fosse “uma figura pública que merecesse a atenção da mídia”. Ela não era antes do crime, mas se tornou depois dele, tornando o caso complexo. 

Reações à sentença 

A AMI (Asosiación de Medios de Información), que representa 80 meios de comunicação espanhóis, disse que a decisão foi uma “grave violação do direito à liberdade de informação”.

A associação assinalou que o tribunal “atribuiu-se o poder duvidoso de decidir o âmbito com que deve ser redigida a informação jornalística , apesar de reconhecer a veracidade da informação publicada e o interesse público do caso”.

A AMI afirmou que os magistrados não podem usurpar o papel dos jornalistas profissionais nem impor o manual de regras que deve reger a redação da informação. 

“Cabe aos editores dos meios de comunicação determinar o alcance das informações que publicam, sempre com o máximo respeito pelo rigor informativo e apuração dos fatos, valores presentes no caso resolvido pelo acórdão do Tribunal Provincial de Huelva”, disse a associação. 

Em entrevista ao jornal espanhol El País, Joaquín Urías, professor de Direito Constitucional e Direito à Informação da Universidade de Sevilha, criticou a decisão, afirmando que a lei não prevê pena para quem publica resumo de uma súmula judicial, caso da jornalista condenada. 

Ele também discordou da tese de que a informação não era relevante, “o que é totalmente o contrário do que o Tribunal Constitucional tem dito a este respeito”.