O governo indiano conseguiu responsabilizar o Twitter pelo conteúdo gerado por usuários, amparado por uma sentença favorável da Suprema Corte, e assim demonstra que sua batalha contra as plataformas digitais é para valer.

A decisão judicial anunciada nesta segunda-feira (5/7) em Nova Delhi é um revés não apenas para o Twitter, mas para todas as plataformas que se apoiam na tese de que não podem responder pelo que é postado por terceiros, como lhes garante a Seção 230 nos Estados Unidos.

Isso não é o que pensa a administração do primeiro-ministro indiano , que em fevereiro baixou uma legislação dura para o setor e concedeu três meses de prazo para que as empresas se adequassem – e a primeira acusada de não cumpri-la é o Twitter.

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Além do novo patamar jurídico estabelecido, a empresa ainda lida com uma ordem de prisão contra seu principal executivo na Índia. A determinação, amparada na mesma lei que fiscaliza o conteúdo publicado na rede social, foi sustada na primeira instância, mas pode ser cumprida, se cassada no tribunal máximo do país. A acusação seria de incitação ao ódio, porém o governo não confirma a informação.

Perder status de intermediário expõe empresa a processos
Protesto contra governo Narendra Modi em Washington (EUA), em março deste ano. (Gayatri Malhotra/Unsplash)

O cumprimento da nova legislação é fundamental para que as empresas de mídias sociais mantenham sua condição de “intermediárias”. O status as protege de processos criminais no caso de qualquer conteúdo postado por seus usuários violar as leis indianas.

Os críticos dizem que as novas leis visam restringir a liberdade de expressão na Índia, mas o governo nega. O jornalista e ativista de direitos digitais Nikhil Pahwa diz que a empresa está sendo usada como exemplo para as demais:

“O governo indiano está fazendo do Twitter um exemplo, para enviar uma mensagem forte a todas as empresas estrangeiras. Nosso governo inveja a China e quer exercer mais controle sobre todos que operam na internet na Índia.”

Passar a responder pelo conteúdo dos usuários pode tornar a vida muito difícil para as plataformas. O sentimento religioso é facilmente ferido na Índia — por exemplo, por um cartoon sobre uma vaca, considerada sagrada pelos hindus — e poderia abrir as portas para milhares de reclamações envolvendo a plataforma e seus executivos.

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O caso contra o Twitter pode ser o primeiro de muitos e faz aumentar a preocupação de que as gigantes tecnológicas norte-americanas tenham dificuldade em fazer negócios em um ambiente regulatório mais rigoroso.

O que estabelece a nova legislação

As novas regras, oficialmente chamadas de Regras de Tecnologia da Informação (Diretrizes do Intermediário e Código de Ética da Mídia Digital) passaram a valer a partir de 26 de maio.

Elas exigem que as empresas de mídia social designem três executivos em tempo integral, todos residentes na Índia — um para compliance (conformidade), outro para lidar com as queixas dos usuários e um terceiro para se relacionar 24 horas por dia com os órgãos de aplicação da lei.

Com relação ao conteúdo, as novas regras determinam a adoção de processos automatizados para retirar material questionável, como pornografia, e que rastreiem e revelem a origem de uma mensagem específica, se solicitado por um tribunal ou governo.

A nova lei também aumenta a responsabilidade quanto às solicitações legais de remoção rápida de postagens, fixando um prazo de até 36 horas para o seu cumprimento.

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Governo acusa empresa de não nomear responsáveis exigidos pela nova lei

O ministro da Informação e Tecnologia, Ravi Shankar Prasad, criticou o Twitter por desafiar deliberadamente a lei e deixou claro que todas as empresas de mídia social devem obedecer às novas regras. Em um de seus tweets publicado em 16 de junho ele disse:

“Empresas indianas, sejam farmacêuticas, de TI ou outras, que vão fazer negócios nos Estados Unidos ou em outros países, voluntariamente seguem as leis locais. Então por que plataformas como o Twitter relutam em seguir as leis da Índia, elaboradas para dar voz às vítimas do mau uso e dos abusos?”

O ministério informou que dois dos executivos indicados pelo Twitter não eram funcionários, que o endereço listado da sede era de um escritório de advocacia e que não foram dados detalhes sobre a terceira contratação exigida, o diretor de compliance, que passa a ser criminalmente responsável pelo não cumprimento das exigências legais.

A administração de Modi disse à Suprema Corte que o não cumprimento do Twitter representava uma violação das disposições da Lei de TI, fazendo com que a empresa americana perdesse a imunidade quanto ao conteúdo gerado pelos usuários, de acordo com o documento com data da última segunda-feira (5/7).

O Twitter disse em um comunicado que está mantendo o ministério de TI “informado sobre o progresso de cada etapa do processo”:

“Um diretor de compliance interino foi contratado e os detalhes serão compartilhados diretamente com o ministério. O Twitter continua a fazer todos os esforços para cumprir as novas diretrizes.”

A empresa havia informado anteriormente que estava “particularmente preocupada com a exigência de tornar um indivíduo (o responsável pelo compliance) criminalmente responsável pelo conteúdo da plataforma, pelos requisitos para monitoramento proativo e pela autoridade geral de buscar informações sobre os clientes”.

Efeito da lei indiana contra o Twitter gera alerta a plataformas. (Adem AY/Unsplash)
 Ordem de prisão foi emitida contra principal executivo do Twitter na Índia

Nas últimas semanas, foram abertos pelo menos cinco processos contra a empresa ou seus funcionários, incluindo alguns relacionados à pornografia infantil e a um polêmico mapa da Índia publicado na rede social.

Em meio às tensões crescentes entre o governo indiano e o Twitter, na semana passada (28/6) o executivo Dharmendra Chatur pediu demissão, depois de ter sido nomeado recentemente como diretor de reclamações residente interino da empresa, um dos cargos exigidos pela nova lei.

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O Twitter não comentou o pedido de desligamento, mas o nome do diretor de reclamações não é mais exibido em seu site, conforme exigido pelas regras.

O pedido de demissão de Chatur agravou uma situação que já estava bastante complicada, especialmente porque aconteceu poucos dias depois que o principal executivo do Twitter na Índia, Manish Maheshwari recebeu uma ordem de prisão, que foi sustada por um tribunal de primeira instância.

A acusação é a de que o Twitter estaria sendo usada para espalhar o ódio, num caso que está sendo apontado como o primeiro depois que a empresa perdeu sua imunidade quanto ao conteúdo gerado por usuários, mas nem o governo e nem o Twitter confirmam.

Enquanto isso, o diretor do Twitter na Índia continua com o risco de ser preso, pois a decisão de primeira instância está sendo contestada na Suprema Corte.

Vídeo de espancamento de idoso muçulmano motivou ordem de prisão

O gatilho da ação contra o principal executivo do Twitter na Índia foi um vídeo compartilhado por usuários da plataforma: o espancamento de um idoso muçulmano de 72 anos chamado Abdul Samad, que ainda teve sua barba cortada, no distrito de Ghaziabad, no estado de Uttar Pradesh, no norte do país.

O vídeo, sem som, se tornou viral por volta do dia 7 de junho e foi compartilhado inclusive por jornalistas de destaque, como Rana Ayyub, Saba Naqvi e Mohammed Zubair.

No mesmo dia, também viralizou outro vídeo de Samad no qual ele acusa os homens que o agrediram de fazê-lo cantar Jai Shri Ram (Salve Lord Ram), que é usado pelos hindus para orar, mas também é usado como uma saudação.

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A polícia de Ghaziabad afirmou que não havia motivação religiosa no incidente. Os seis homens que espancaram Samad foram presos e teriam cometido a agressão por terem se sentido enganados pela vítima, depois de terem comprado amuletos que não funcionaram para lhes trazer sorte.

Os investigadores dizem que os tweets insinuaram falsamente que um muçulmano fora espancado por hindus com “a intenção de provocar agitação comunitária”. A maioria dos jornalistas apagou os tweets. Zubair disse que resolver retirar o vídeo ao verificar que as alegações de Samad não estavam batendo.

“Eu apaguei os vídeos que tinha postado. A versão da vítima de que teria sido forçada a cantar “Jai Shri Ram” parece não ter fundamento, de acordo com minhas conversas com as autoridades policiais e outros jornalistas que cobrem a questão.”

Mesmo assim, foram registradas queixas contra os três jornalistas, com graves acusações criminais, e também contra três políticos do partido de oposição, o site de notícias The Wire e o Twitter Índia.

O diretor do Twitter na Índia se ofereceu para realizar uma videoconferência com a polícia, mas as autoridades exigiram que ele se apresentasse pessoalmente. Antes da nova lei, essa convocação dificilmente aconteceria, pois assim como as telefônicas, as empresas de mídias sociais não precisavam se responsabilizar pelas postagens em suas plataformas, bastando retirá-las quando legalmente exigido.

WhatsApp processa governo para não revelar origem das postagens

O Twitter não é a única empresa em desacordo com o governo indiano. No mês passado, o WhatsApp processou o governo por causa das regras, as quais, segundo a empresa, a obrigariam a violar a privacidade dos usuários. 

O WhatsApp é a maior plataforma de mensagens da Índia, onde tem mais de 400 milhões de usuários, que representam um quinto de seus clientes globais.

A plataforma, que é de propriedade do Facebook, se opõe especialmente à regra que exige que se revele a origem de uma mensagem, o que a empresa diz que a forçará a quebrar a criptografia e a ler e armazenar todas as mensagens.

Não é bem assim, dizem funcionários do governo: o WhatsApp deve encontrar uma maneira de cumprir a lei sem quebrar a criptografia. Em comunicado, o WhatsApp diz que “para manter uma impressão digital de cada mensagem enviada” em um banco de dados seria necessário quebrar a criptografia e prejudicar o direito das pessoas à privacidade.

A nova regra afetaria outras plataformas criptografadas, como Signal e iMessage, da Apple. Por enquanto, porém, a discussão do tema está centrada apenas entre o governo indiano e o WhatsApp.

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