A situação da imprensa no Afeganistão é dramática, com veículos independentes fechados pelo Talibã e jornalistas perseguidos e até assassinados. Mais sorte tiveram os que conseguiram deixar o país nos voos de resgate, mas não é fácil deixar tudo para trás.

Um dos relatos mais pungentes foi o da jornalista Farida Nekzad, editora-chefe da Pajhwok Afghan News, a maior agência de notícias independente do Afeganistão. Ela é vencedora do prêmio International Women’s Media Foundation “Coragem no Jornalismo” em 2008 e diretora do Centro para a Proteção de Jornalistas Mulheres Afegãs (CPAWJ). 

Em depoimento à Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) após chegar ao Catar, onde se refugiou provisoriamente com a família  ela contou como foram as horas que se passaram entre o confinamento em uma capital em estado de guerra, a jornada até o aeroporto e a espera até poder embarcar, no dia 24/8.

Neste vídeo, gravado por um repórter do jornal alemão Bild,  ela afirma que o Talibã não tem limites nem respeita nada, e por isso jornalistas estão em perigo, sobretudo as mulheres, depois que foram instadas a ficar em casa. Ela falou do perigo de deixar o país e que chegou a ser perseguida. Mas lamenta que as que ainda estão lá vivem sob ameaça. 

Leia o relato da jornalista sobre como foi o voo de partida e sobre o futuro de quem teve que se exilar:

“Quando fugi de Cabul, estava entre pelo menos 15 outros profissionais da mídia no avião. Havia jornalistas famosos da Zen TV, Ariana News, Khalid, Tolo News [redes nacionais do país] e alguns outros funcionários da mídia regional.

Farida Nekzad (Divulgação/IWMF)

Alguns eram jornalistas experientes que trabalharam por muito tempo no Afeganistão, mas infelizmente não tiveram outra escolha a não ser ir embora.

A situação era realmente horrível. Um grande problema era que, embora a maioria dos jornalistas tivesse recebido uma carta de saída, nada estava claro sobre o processo de evacuação: não havia um sistema claro de transporte, nenhum local, nenhum ponto focal onde devíamos nos encontrar para chegar ao aeroporto.

Tive a sorte de ter um carro providenciado pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas para ir do Hotel Serena em Cabul até o aeroporto. Havia uma lista com nomes de pessoas que poderiam deixar o hotel. Assim que chegamos ao aeroporto, eles checaram os nomes na lista antes de nos deixarem entrar.

Leia também

Uma vez no aeroporto, o local estava lotado por toda parte. De um lado, civis com documentos e passaportes tentavam correr para entrar no aeroporto e, do outro lado, membros do Talibã atirando, às vezes no ar, mas às vezes também cara a cara. Várias pessoas ficaram feridas.

Depois de esperar por 8-9 horas, finalmente tivemos a chance de entrar no avião. Todos no avião choravam, inclusive eu. Chorei desde o momento em que entrei no hotel até entrar no aeroporto do Catar. Não é algo fácil, deixar sua terra natal. 

Lutamos por 20 anos pela democracia, liberdade de imprensa, mídia livre e presença de mulheres jornalistas. Todo esse progresso e sacrifício foram retirados em um minuto e agora estamos 20 anos de volta à ignorância e ao período sombrio do Talibã.

Não sei o que me espera no futuro. No avião, três mulheres da Ariana News também estavam tristes e muito confusas sobre o que deveríamos fazer: morar no Catar ou em um terceiro país? Fazer carreira de novo? É uma perda de tempo?

Esperamos que a comunidade internacional preste atenção a esses jovens, bem como aos idosos e especialistas afegãos, e os ajude a retomar suas atividades.”

Leia também 

Uma jornalista corajosa 

Nekzad começou a se interessar por jornalismo quando era adolescente, enquanto assistia a entrevistas com autoridades afegãs na televisão. Mas quando o Talibã assumiu o controle do país, em 1996, foi forçada a se retirar da Universidade de Cabul para se refugiar no Paquistão, onde permaneceu no exílio por cinco anos, no período em que a situação da imprensa no Afeganistão se tornou mais crítica. 

Ao retornar, no final de 2001, Nekzad trabalhou como produtora e editora para vários meios de comunicação e também se tornou uma treinadora de jornalistas. Em sua carreira ele já cobriu política, questões econômicas e sociais, direitos das mulheres e a reconstrução de Afeganistão.

A jornalista recebeu várias ameaças, mas não deixou que interferissem em suas reportagens. E sempre disse que queria ficar  no Afeganistão para promover os direitos das mulheres e aumentar a presença das mulheres na sociedade. Nekzad, que é vice-presidente da Comissão de Mídia do Sul da Ásia, também se empenhou em apoiar mulheres jornalistas e incentivar mais mulheres a se tornarem jornalistas.

Em 2008, quando recebeu o prêmio Coragem no Jornalismo, ela disse:

“Acima de tudo, nós nos esforçamos para dizer ao mundo o que está acontecendo com as mulheres no Afeganistão, mesmo que algumas de nós tenhamos que sacrificar nossas vidas. […] Quero provar que nós – jornalistas – podemos trabalhar ombro a ombro com nossos irmãos e, ao mesmo tempo, permanecer firmes em nossa profissão. “

A partida de Cabul colocou um fim ao sonho, pelo menos por enquanto. 

Leia também

Imprensa no Afeganistão tem publicações fechadas e jornalistas abandonam casas tentando fugir

Na TV, Talibã usa soldados armados e faz apresentador ler mensagem em que diz: “Não tenham medo”