Londres – A mídia estatal russa era o porto seguro de Vladimir Putin para manter boa parte da população do país informada sobre a guerra da Ucrânia apenas pela ótica do Estado, até que uma jornalista corajosa furou o bloqueio da censura  – e pode pagar caro por isso. 

Marina Ovsyannikova, de 44 anos, produtora e editora do Channel One, invadiu na segunda-feira (14) o estúdio no qual uma apresentadora transmitia o telejornal noturno Vremya, com audiência estimada de 15 milhões de pessoas, com um cartaz condenando a guerra e as mentiras da propaganda estatal.

O ato foi surpreendente, pois a jornalista tem uma longa carreira na mídia estatal. E segundo perfis publicados depois que ganhou notoriedade, não tinha um histórico de combate ao governo ou de expor ideias políticas em suas redes sociais, onde exibia vida glamurosa. 

Protesto na mídia estatal russa pode valer 10 anos de prisão 

Ovsyannikova ficou desaparecida desde o momento de seu ato de protesto até ser vista novamente ao sair de uma instalação policial.

Ela disse a repórteres que passou dois dias sem dormir e foi interrogada por mais de 14 horas, sem advogado ou a oportunidade de entrar em contato com seus entes queridos.

“Foi minha decisão anti-guerra. Tomei essa decisão sozinha porque não concordo com a invasão iniciada pela Rússia”, disse ela em inglês ao sair do tribunal.

A jornalista foi considerada culpada por “organizar um evento público não autorizado” e multada em 30.000 rublos (R$ 1,4 mil).

Por enquanto saiu barato, mas diante das perseguições do governo russo à imprensa, é provável que ela ainda sofra mais sanções.  

Segundo especialistas, a jornalista pode enfrentar uma década de prisão por acusações de traição, decorrentes da nova lei de fake news imposta por Vladimir Putin e que acabou determinando a saída da mídia estrangeira e das plataformas digitais do país.

O ato viralizou nas redes sociais ocidentais e ela passou a ser tratada como heroína.

Antes do protesto ao vivo, Marina Ovsyannikova postou um vídeo se identificando como funcionária do Channel One.

De acordo com uma tradução do grupo russo de direitos humanos OVD-Info, ela disse:

“O que está acontecendo na Ucrânia agora é um verdadeiro crime. E a Rússia é o agressor. E a responsabilidade por este crime está apenas na consciência de uma pessoa, e essa pessoa é Vladimir Putin . Meu pai é ucraniano, minha mãe é russa.

“Eles nunca foram inimigos. E este colar no meu pescoço [nas cores das bandeiras russa e ucraniana] é um símbolo do fato de que a Rússia deve parar imediatamente a guerra fratricida para que nosso povo ainda possa se reconciliar.

“Infelizmente, nos últimos anos tenho trabalhado no Channel One, criando propaganda do Kremlin e agora tenho muita vergonha disso. 

Estou envergonhado por deixá-los contar mentiras na tela da TV. Estou envergonhado por ter permitido que eles zumbissem o povo russo.

“Ficamos em silêncio em 2014, quando tudo isso estava começando. Não saímos para comícios e protestos quando o Kremlin envenenou Navalny. 

Nós apenas observamos silenciosamente esse regime anti-humano. E agora o mundo inteiro virou as costas para nós.

“E mais dez gerações de nossos descendentes não poderão lavar a vergonha desta guerra fratricida. Nós somos o povo russo. Somos atenciosos e inteligentes, está apenas em nosso poder parar essa loucura

“Saia para protestar, não tenha medo de nada, eles não podem prender todos nós.”

“Agora o mundo inteiro se afastou de nós e as próximas 10 gerações de nossos descendentes não lavarão a vergonha desta guerra fratricida”.

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Longa carreira na mídia estatal russa 

A posição combativa aproveitando um espaço na censurada mídia estatal russa destoa do passado de Marina Ovsyannikova e certamente mudará a vida que levou até hoje.

Ela nasceu em 1978 em Odessa, cidade portuária ucraniana ameaçada de ataque, e cresceu no sul da Rússia.

Na escola de jornalismo da Universidade de Kuban, estudou com Margarita Simonyan, a editora-chefe de um dos principais órgãos da mídia estatal russa, a RT (Russian Television).

Alinhada ao governo, Simonyan foi notícia há poucos dias ao comemorar o reconhecimento das duas regiões separatistas apoiadas pelo Kremlin na Ucrânia, Luhansk e Donetsk, perguntando por que não havia champanhe no estúdio e dizendo que o momento era “de verdadeira felicidade”. 

Depois da invasão do estúdio, a editora da RT negou ser amiga da jornalista que furou o bloqueio da censura estatal, embora tenha admitido que a recomendou para uma vaga. 

E sugeriu que a profissional tinha um relacionamento especial com o diretor da faculdade, o que teria facilitado seu caminho para se tornar correspondente da emissora VGTK. 

Mesmo que a relação com a atual editora da Russian Television fosse mesmo distante, Marina Ovsyannikova tinha outros laços pessoais com a rede estatal: foi casada com um diretor da RT, Igor Ovsyannikov. 

Ela se tornou uma repórter popular na região e foi descrita por ex-colegas como corajosa. 

Sem política na mídia social 

No entanto, em suas redes sociais a atividade era bem diferente do ato que protagonizou no início da semana.

No Instagram ela se apresenta como integrante do Channel One, mas não se refere a atividades profissionais. Diz ser mãe feliz, dona de cães golden retrievers e destaca o gosto por fitness e natação em mar aberto.

A conta é privada, mas posts antigos revelam que ela tinha uma vida glamurosa, exibindo nas redes roupas caras, jóias e viagens possíveis com um bom salário de funcionária graduada da mídia estatal da Rússia. 

Foto: Facebook

Por isso ela não despertou suspeitas quando mudou de ideia sobre o regime russo e resolveu denunciar a propaganda na mídia estatal, aproveitando-se do acesso livre ao estúdio do telejornal ao vivo por ser editora. 

Mas o Kremlin não gostou. “No que diz respeito a essa mulher, isso é vandalismo”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, a repórteres, elogiando o Channel One pelo que chamou de “programação de qualidade, objetiva e oportuna.”

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky reconheceu o ato de Ovsyannikova durante um discurso.

“Sou grato aos russos que não param de tentar transmitir a verdade. Aos que combatem a desinformação e dizem a verdade, fatos reais a seus amigos e entes queridos”, disse Zelensky.

“E pessoalmente à mulher que entrou no estúdio do Channel One com um pôster contra a guerra.”

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A lei das fake news na Rússia 

O protesto de Marina Ovsyannikova em um dos principais canais da mídia estatal aconteceu no 19º dia da invasão russa à Ucrânia, que o governo de Vladimir Putin classifica como “operação militar especial”.

Graças à uma nova lei de censura aprovada no parlamento russo no início do mês, jornalistas e profissionais de imprensa que descreverem o conflito como uma guerra ou divulgarem o que o Kremlin descreveu como informações “falsas” podem pegar até 15 anos de prisão.

A lei já obrigou diversos meios de comunicação a fecharem depois de cobrirem negativamente a guerra e muitos jornalistas foram forçados a fugir do país, incluindo estrangeiros e colaboradores de grandes veículos como CNN, New York Times e a agência espanhola EFE.

A mídia estatal russa é a principal fonte de notícias para milhões de cidadãos e segue a linha do discurso de Putin de que o país foi forçado a agir na Ucrânia.

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